São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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Mônica Bergamo

@ - bergamo@folhasp.com.br

Paulo Fehlauer/Folha Imagem
O ator cearense, nos fundos de casa, em Perdizes; ele divide o aluguel com dois amigos dos tempos da faculdade

Quero ser galã

Gero Camilo já recusou convite para fazer novela por não ser dado a ele o papel de galã e a possibilidade de "subverter o estereótipo de beleza". Também nega-se a fazer propaganda. "Entendo meu trabalho como resistência", diz

Gero Camilo está de escumadeira na mão e avental de cozinha estampado com chaleiras, bules e panelinhas. Com a mão que está livre, abre o portão da casa, numa travessa da avenida Cerro Corá, em Perdizes. É quarta-feira e, depois de algumas tardes de chuva, lençóis, meias e cuecas coloridas secam ao sol no varal. Gero segura uma cebola e sorri: "Se o almoço não der certo, tem um restaurante por aqui". Não, não é um personagem. É a vida do ator cearense que, como ele mesmo diz, nunca se rendeu ao Miojo -nem às novelas da TV.

 

Gero participou de longas como "Carandiru" (ele formava o casal com Rodrigo Santoro, em quem deu o célebre beijo na boca) e "Bicho de Sete Cabeças", teve sua peça, "Aldeotas", que escreveu e estrelou por quatro anos, indicada a quatro prêmios Shell e estreou, na última sexta, "Navalha na Carne", montagem do clássico de Plínio Marcos. Na televisão, participou só da minissérie "Hoje É Dia de Maria".
 

"Entendo meu trabalho como resistência. Não gosto quando meus colegas dizem que fazem TV pra ganhar dinheiro e depois fazer cinema ou teatro. Não que eu tenha preconceito com TV. Tenho amigos lá, respeito. Mas tem muita merda sendo feita."
 

Começa, então, a picar a cebola para a receita do dia: estrogonofe -que, na sua versão, só leva frango, creme de leite e curry-, arroz e salada. "Já recebi muitos convites, é verdade", diz. "Uma vez um diretor de novela da TV Globo ligou: queria me dar papel num casal romântico da periferia. Eu disse que aceitaria se pudesse subverter, se o casal fosse "o" casal. Queria ser o galã da novela, para transgredir o estereótipo de galã. Ele ficou de ligar. Adivinha? Nunca mais."
 

E completa: "Um desafio meu quando fiz cinema antes de TV era construir uma identidade de cinema. Quero ser referência pelo cinema. Acho que os diretores são medrosos, pra não dizer covardes, na escolha dos atores. Aproveitam a TV, e não criam uma identidade".
 

A casa do ator fica de frente para uma praça e tem na entrada um jardim não muito arrumado -ou "selvagem, cabeleira de capim", como diz uma das letras de seu CD, "Canções de Invento". Solteiro aos 37 anos, mora lá com dois amigos dos tempos de EAD (Escola de Artes Dramáticas). A cozinha, aliás, lembra a de uma república universitária: fogão quatro bocas, geladeira velha, pratos e talheres de modelos diferentes.
 

"Uma revista publicou que ["Aldeotas'] era um espetáculo gay. Liguei lá e mandei tirar. Porque não é gay e ponto. E não é autobiográfica, embora todas as questões passem por mim, da sexualidade à arte. Na verdade, é uma biografia do sentimento, meu, seu, dele", diz Gero, enquanto lava folhas de alface para a salada. Um amigo, Rubi, chega à casa. Violão debaixo do braço, puxa a música, com letra de Gero: "Meu companheiro ator/ caça uma quebra de texto". Gero cuida do arroz e solta pequenos risos durante a apresentação: "Que lindo". Rubi vai embora e o ator conta que vive um tipo de "comunismo com os amigos, os próximos".
 

"Sou um comunista convicto. Acredito numa revolução com os meus. Tive uma família muito grande e esse comunismo, de certa forma, tinha que existir. Minha família é da periferia do Ceará, minha mãe teve 19 irmãos e minha avó criou até uma criança deixada na porta. Era preciso dividir." Os ideais -"vesti camiseta do Che Guevara, isso tudo"- o levaram à Teologia da Libertação e à porta do seminário. "Ia ser padre, porque fazia parte da minha militância. Daí entrei na EAD."
 

Veio a São Paulo pela primeira vez aos sete anos, no caminhão do pai. A viagem, do Ceará à capital, durou cinco dias. "Minha mãe queria ficar mais perto do meu pai, que viajava muito porque era caminhoneiro. Mas, chegando aqui, ele continuou viajando e acabamos voltando." Aos 23, voltou de vez: foi morar no Crusp, a moradia da USP, depois de passar no vestibular.
 

De lá para cá, mudou-se para Perdizes e deixou de ler as notícias de política "porque ficaram muito novelescas"."Não sei se votaria no PT de novo, mas é difícil ter qualquer outra opção que não seja o nulo. Recebi um convite do governo para fazer a propaganda da transposição do rio São Francisco e não aceitei. Sou totalmente contra."
 

"O arroz está pronto", diz. Serve-se de salada e suco de laranja. "Sabe o que eu me pergunto? Como é que uma peça ["Aldeotas", no teatro da PUC] fica quatro anos em cartaz, com casa cheia, e não dá dinheiro?" Ele mesmo responde: "Cobramos R$ 50 de ingresso, mas 85% é meia-entrada. Tem uma cota para funcionários [da PUC] e assim vai... Da última temporada de dois meses, vou ganhar mais ou menos R$ 6.000. É muito pouco".
 

Sem patrocínio, ele bancou a peça. "A burguesia do país é muito limitada. Trazer o Cirque du Soleil é um luxo. Agora, pegar palhaços daqui, como os do [grupo] "Jogando no Quintal", não. As empresas não querem patrocinar. Querem isenção fiscal, um jeito de ganhar."
 

Terminado o almoço, ele leva os pratos à pia. Está quase na hora do ensaio de "Navalha na Carne". "Estamos a léguas de distância do teatro comercial", diz, já fechando as janelas da casa, prevendo a chuva do fim da tarde -ele só voltará do ensaio depois das onze da noite. "Nosso teatro é espontâneo, nasce independente. Alguns podem se dar ao luxo de fazer teatro apenas quando há dinheiro. Outros não, porque, para esses outros, é coisa de vida."

Reportagem AUDREY FURLANETO

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