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ARNALDO JABOR
Fernanda é a dona-de-casa transcendental
Fernanda Montenegro me
disse uma vez: "As palavras e
as idéias devem ser leves como
a música". Isto é o que ela faz
nos palcos e telas -nunca "entra" em personagens; as personagens se encarnam em Fernanda.
Existe um culto a Fernanda
que me irrita um pouco, que é
um respeito "conteúdista", como se ela fosse uma professora,
uma intelectual, um exemplo
ético. Virou lugar-comum gostar dela: "Ahh... a Fernandona
é uma pessoa incrível, uma
grande mulher!, etc".
Fernanda não é nada disso;
ela é um "cavalo" das palavras.
Esta carapaça de estátua não
lhe fica bem, todo este bronze
cheio de azinhavre não é apropriada veste para Fernanda.
Ela está muito mais para Clarice Lispector do que para Mario
de Andrade. Muito mais instrumento do que compositora,
ela aprofunda as músicas propostas, ela é a forma de seres
que nascem dela, as personagens hiper-realizadas de nossa
vida brasileira.
Uma vez quiseram que ela
fosse ministra da Cultura. Ainda bem que ela não aceitou. Se
tivesse topado, estaria frita, estaria trancada num conteúdo
congelado, paralisada, definida.
Fernanda sabe que, como
pessoa, ela não vale nada. Ela
vale como deslizamento de
muitas mulheres do país, que
habitam-na, ganham vida e
depois vão embora. Por isso,
Fernanda sabe que tem de viver desabitada. Fernanda é
uma página. Ali se desenham
muitas mulheres. Eu já vi passarem tantas.
Fernanda é uma espécie de
dona-de-casa transcendental
-seu tipo básico- perdida
entre a cama e a cozinha, entre
os filhos e o útero, entre o trágico cotidiano feliz e os ovários
crescendo, os telefones tocando, as empregadas com pano
na cabeça.
Fernanda são as "medéias"
arrumando a casa que Nelson
Rodrigues nos revelou, as mulheres óbvias da Tijuca e do
Grajaú, tomando "Regulador
Xavier", com medo de varizes,
mas com a tragicidade de
"electras", de "antígonas".
Assim como Nelson Rodrigues foi o suburbano transcendental, Fernanda é a meta-dona-de-casa, a hiper doméstica,
a mãe de família além-do-horizonte. Isso não impede que a
ela se agreguem as putas, as
histéricas do século passado, as
"adélias prado", as infelizes de
Ibsen, de Pinter, de O'Neills, todas recebendo dela a linfa vital, a transfusão do sangue de
nossas tias, de nossas vizinhas
brancas da janela dos anos 40,
das passageiras de ônibus, onde queima, no banco ao lado,
uma fome de amor ou uma infelicidade calada, como a "Falecida" que o Leon Hirszman
filmou, a mulher sozinha no
trem da Central do Brasil, a funérea Bovary, com o sonho de
ter um enterro de luxo.
Quando eu era menino, sempre me fascinavam as mulheres
nas salas de visitas. Eu entrava
e ficava olhando as pernas cruzadas, o decoro, as meias náilon, o pudor, suas conversas
mantendo um fogo brando,
suas vozes comedidas para segurar um grito, me fascinava a
boa educação das senhoras que
pareciam prestes a explodir.
Fernanda explodiu; ela rompeu o pacto do domínio do lar,
do anuário das senhoras, das
"flores brancas", do ciclo menstrual vigiado -excesso ou escassez? Eu já tive a felicidade
de dirigir Fernanda mãe e Fernanda filha em "Tudo Bem" e
em "Eu Sei que Vou te Amar".
Dirigi outras grandes atrizes
também em filmes e no palco,
Deus seja louvado. Pensam que
chamei a "Fernandona" porque ela era a "grande dama"
etc? Não. Chamei-a por causa
de umas olheiras negras de carvão que ela pintou numa personagem de "vaudeville" com
os cabelos eriçados numa peça
de Feydeau, tempos atrás; muitos anos depois, eu vi estas mesmas olheiras negras na "Fedra"
que ela fez.
Ela sempre coloca uma insanidade nas personagens, sempre toca de lado, sempre fala
nas teclas pretas, nos sustenidos e bemóis, falando obliquamente para que nunca esqueçam que aquilo é arte, "a imitação de algo maior e misterioso que a vida tenta imitar", como diria Artaud. Seria injusto
dar só a Fernanda este condão
de abrir a porta para as brasileiras. Marilia Pera é assim,
mas, enquanto Fernanda
enlouquece na cozinha dos
anos 40, Marilia foge de casa
nos anos 60 e vai encarnar as
neuróticas, as encrenqueiras
em busca de sentido. Sonia
Braga salvou as mulheres, é a
mártir da sexualidade. A grande esquecida Isabel Ribeiro
protegeu as pálidas e moribundas -sempre me pareceu que
ela ia morrer cedo. Darlene
Glória imortalizou as putas.
Outra vez, Fernanda me disse: "Eu nunca fui realista. O
realismo engana muito". Lembrei-me de Gide (ou foi Bernanos?), que disse a um escritor:
"O senhor é um realista, logo é
um canalha!". Contei isso a ela,
que não ligou muito para a citação, detectando meu exibicionismo, e completou: "Mesmo quando estou na TV, estou
no palco". O teatro dela não é
solene, faustoso; dela é o teatro
de "duas tábuas e uma paixão". Seu material vem de fora,
não vem do texto apresentado,
vem das ruas, dos gestos, dos
sons de vozes dos outros. Assim
também, quando Marilia Pera
surge em close mascando chiclete no "Pixote", vem com ela
uma linhagem de putas desamparadas, e quando Darlene
Gloria, em "Toda Nudez Será
Castigada", corta os pulsos, estão com ela as suicidas do amor
dos jornais populares, e quando Fernandinha ou Julia Lemmertz contam em "Eu Sei que
Vou te Amar" que deram de
mamar a um executivo nacional, estão ali nossas pobres mulheres em busca de verdade.
Estou vos escrevendo do passado. Hoje é sábado e meu prazo de entrega de artigo é domingo à tarde. Portanto, se a
nossa Fernanda Montenegro
não ganhou o Oscar, este texto
termina assim: "Canalhas imperialistas, vocês usaram nossa
grande atriz para fazer média
conosco, nós, os subdesenvolvidos que vocês querem cooptar
para seus planos de manter a
dominação econômica, sob o
sórdido pretexto da globalização. Damn yankees!".
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