São Paulo, terça, 23 de março de 1999
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ARNALDO JABOR
Fernanda é a dona-de-casa transcendental

Fernanda Montenegro me disse uma vez: "As palavras e as idéias devem ser leves como a música". Isto é o que ela faz nos palcos e telas -nunca "entra" em personagens; as personagens se encarnam em Fernanda.
Existe um culto a Fernanda que me irrita um pouco, que é um respeito "conteúdista", como se ela fosse uma professora, uma intelectual, um exemplo ético. Virou lugar-comum gostar dela: "Ahh... a Fernandona é uma pessoa incrível, uma grande mulher!, etc".
Fernanda não é nada disso; ela é um "cavalo" das palavras. Esta carapaça de estátua não lhe fica bem, todo este bronze cheio de azinhavre não é apropriada veste para Fernanda. Ela está muito mais para Clarice Lispector do que para Mario de Andrade. Muito mais instrumento do que compositora, ela aprofunda as músicas propostas, ela é a forma de seres que nascem dela, as personagens hiper-realizadas de nossa vida brasileira.
Uma vez quiseram que ela fosse ministra da Cultura. Ainda bem que ela não aceitou. Se tivesse topado, estaria frita, estaria trancada num conteúdo congelado, paralisada, definida.
Fernanda sabe que, como pessoa, ela não vale nada. Ela vale como deslizamento de muitas mulheres do país, que habitam-na, ganham vida e depois vão embora. Por isso, Fernanda sabe que tem de viver desabitada. Fernanda é uma página. Ali se desenham muitas mulheres. Eu já vi passarem tantas.
Fernanda é uma espécie de dona-de-casa transcendental -seu tipo básico- perdida entre a cama e a cozinha, entre os filhos e o útero, entre o trágico cotidiano feliz e os ovários crescendo, os telefones tocando, as empregadas com pano na cabeça.
Fernanda são as "medéias" arrumando a casa que Nelson Rodrigues nos revelou, as mulheres óbvias da Tijuca e do Grajaú, tomando "Regulador Xavier", com medo de varizes, mas com a tragicidade de "electras", de "antígonas".
Assim como Nelson Rodrigues foi o suburbano transcendental, Fernanda é a meta-dona-de-casa, a hiper doméstica, a mãe de família além-do-horizonte. Isso não impede que a ela se agreguem as putas, as histéricas do século passado, as "adélias prado", as infelizes de Ibsen, de Pinter, de O'Neills, todas recebendo dela a linfa vital, a transfusão do sangue de nossas tias, de nossas vizinhas brancas da janela dos anos 40, das passageiras de ônibus, onde queima, no banco ao lado, uma fome de amor ou uma infelicidade calada, como a "Falecida" que o Leon Hirszman filmou, a mulher sozinha no trem da Central do Brasil, a funérea Bovary, com o sonho de ter um enterro de luxo.
Quando eu era menino, sempre me fascinavam as mulheres nas salas de visitas. Eu entrava e ficava olhando as pernas cruzadas, o decoro, as meias náilon, o pudor, suas conversas mantendo um fogo brando, suas vozes comedidas para segurar um grito, me fascinava a boa educação das senhoras que pareciam prestes a explodir.
Fernanda explodiu; ela rompeu o pacto do domínio do lar, do anuário das senhoras, das "flores brancas", do ciclo menstrual vigiado -excesso ou escassez? Eu já tive a felicidade de dirigir Fernanda mãe e Fernanda filha em "Tudo Bem" e em "Eu Sei que Vou te Amar". Dirigi outras grandes atrizes também em filmes e no palco, Deus seja louvado. Pensam que chamei a "Fernandona" porque ela era a "grande dama" etc? Não. Chamei-a por causa de umas olheiras negras de carvão que ela pintou numa personagem de "vaudeville" com os cabelos eriçados numa peça de Feydeau, tempos atrás; muitos anos depois, eu vi estas mesmas olheiras negras na "Fedra" que ela fez.
Ela sempre coloca uma insanidade nas personagens, sempre toca de lado, sempre fala nas teclas pretas, nos sustenidos e bemóis, falando obliquamente para que nunca esqueçam que aquilo é arte, "a imitação de algo maior e misterioso que a vida tenta imitar", como diria Artaud. Seria injusto dar só a Fernanda este condão de abrir a porta para as brasileiras. Marilia Pera é assim, mas, enquanto Fernanda enlouquece na cozinha dos anos 40, Marilia foge de casa nos anos 60 e vai encarnar as neuróticas, as encrenqueiras em busca de sentido. Sonia Braga salvou as mulheres, é a mártir da sexualidade. A grande esquecida Isabel Ribeiro protegeu as pálidas e moribundas -sempre me pareceu que ela ia morrer cedo. Darlene Glória imortalizou as putas.
Outra vez, Fernanda me disse: "Eu nunca fui realista. O realismo engana muito". Lembrei-me de Gide (ou foi Bernanos?), que disse a um escritor: "O senhor é um realista, logo é um canalha!". Contei isso a ela, que não ligou muito para a citação, detectando meu exibicionismo, e completou: "Mesmo quando estou na TV, estou no palco". O teatro dela não é solene, faustoso; dela é o teatro de "duas tábuas e uma paixão". Seu material vem de fora, não vem do texto apresentado, vem das ruas, dos gestos, dos sons de vozes dos outros. Assim também, quando Marilia Pera surge em close mascando chiclete no "Pixote", vem com ela uma linhagem de putas desamparadas, e quando Darlene Gloria, em "Toda Nudez Será Castigada", corta os pulsos, estão com ela as suicidas do amor dos jornais populares, e quando Fernandinha ou Julia Lemmertz contam em "Eu Sei que Vou te Amar" que deram de mamar a um executivo nacional, estão ali nossas pobres mulheres em busca de verdade.
Estou vos escrevendo do passado. Hoje é sábado e meu prazo de entrega de artigo é domingo à tarde. Portanto, se a nossa Fernanda Montenegro não ganhou o Oscar, este texto termina assim: "Canalhas imperialistas, vocês usaram nossa grande atriz para fazer média conosco, nós, os subdesenvolvidos que vocês querem cooptar para seus planos de manter a dominação econômica, sob o sórdido pretexto da globalização. Damn yankees!".


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