São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

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LIVROS

ENSAIO

Em "Estudos sobre Teatro" dramaturgo desautoriza idéias a respeito dele

"Anotações" revelam Bertolt Brecht em constante mutação

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Em sua autobiografia, Giorgio Strehler lembra-se de seu último encontro com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956): entre jovens "brechtianos" militantes, o "mestre", que recusava esse título, destruía com ironia todas as suas convicções. "Não confiem muito no "Organon'", dizia. "O teatro se faz no palco. Tudo ainda está para ser esclarecido."
Para manter Brecht vivo e atuante, é essencial não mumificá-lo em fórmulas definitivas. E, para isso, o autor mais indicado é o próprio Brecht. A reedição de "Estudos Sobre Teatro", lançada pela Nova Fronteira, que coincide com a proibição momentânea da encenação de seus textos, pode ser uma boa ocasião para rever princípios que já são impostos por alguns como receitas infalíveis para um teatro unívoco.

Mutante
Se Brecht dá ênfase à função de transformar o mundo por meio do teatro, dá igual importância ao fato de o teatro estar refletindo um mundo em transformação. Assim, cada montagem sua se esforça em estar também em mudança contínua, atenta às circunstâncias de época e lugar, cada qual com seu objetivo específico.
Por isso, o que forma o volume é menos um conjunto orgânico de princípios do que "notas sobre peças e representações", título da primeira parte do volume. Idéias cristalizadas sobre Brecht são assim desautorizadas por ele.
A primeira dessas idéias é que qualquer emoção deve ser evitada no teatro épico quando justamente o humor é o maior instrumento do seu famoso "distanciamento".
"É preciso defender o teatro épico contra qualquer suspeita de se tratar de um teatro profundamente desagradável, enfadonho e fatigante", diz ele, que menospreza os naturalistas exatamente porque eles se arvoram em diretores de consciência dos outros.
Sem se automistificar, o dramaturgo define que "o conteúdo da ópera "Mahagonny" é o prazer" e propõe, no próprio "Organon", que é visto por alguns como uma bíblia do teatro científico longe dos "prazeres burgueses": "Tratemos o teatro como um recinto de diversão, único tratamento possível desde que o enquadremos em uma estética".
Diversão, no entanto, que não se opõe à função de retratar o mundo. Ao responder à indagação de Friedrich Dürrenmatt (1921-90), "poderá o mundo de hoje ser reproduzido pelo teatro?", declara Brecht: "Não posso afirmar que a representação épica seja a solução por excelência... mas só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual se o descrevermos como um mundo passível de modificação".
O problema do teatro, portanto, não é o fato de ele ser comercializado como "iguaria", mas o fato de a criação artística ser vista apenas como matéria-prima de uma engrenagem que não está mais a serviço do público nem do artista, mas de um sistema dominante dado como imutável.
Em tempos que os fantasmas da velha ópera se arvoram como única saída comercial para o teatro e que "brechtianos" cristalizados desconfiam de qualquer teatro que utilize a emoção, é preciso, a exemplo de Brecht, reivindicar o prazer como fator de transformação do mundo.


Estudos Sobre Teatro
    
Autor: Bertolt Brecht
Editora: Nova Fronteira
Tradução: Fiama Pais Brandão
Quanto: R$ 29 (256 págs.)


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