São Paulo, segunda-feira, 23 de abril de 2007

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A São Paulo de Adoniran

Da "saudosa maloca" à rua dos Gusmões, Folha visita locais, ruas e bairros cantados pelo compositor , que tem apresentação para a televisão lançada em DVD

Tuca Vieira/Folha Imagem
Prédio da rua Aurora que tomou o lugar da "saudosa maloca"


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ali onde era um palacete assobradado -a "saudosa maloca"-, agora está, ao pé de um edifício alto, o Cine Áurea. "A maior tela e a melhor projeção de som dos cinemas pornôs", anuncia o cartaz.
Outros, colados nas laterais de uma escadaria que algum dia já foi imponente, explicam o que será projetado: "Dócil Potranca", "I've Been Sodomized" e "Gang Bang 5", entre outras fitas, com anúncios ilustrados.
Na entrada ao lado, no andar térreo do mesmo prédio, as duas fotos que adornam a academia de musculação são de Arnold Schwarzenegger. Há ainda uma placa discreta, onde se lê: "Adoniran Barbosa, cronista de São Paulo, 6/8/1910 -23/11/1982".
A região em volta, "boca do lixo", centro velho de São Paulo, foi não só local de moradia do compositor como também tema de várias de suas canções, reunidas agora em DVD (leia mais na pág. E3).
Mudou, como tudo em São Paulo, "ma non troppo". Foram-se as malocas, mas ficaram -na área que já não era das mais bem-afamadas em meados do século passado- os "maloqueiros", como dizem os paulistas (segundo o Aurélio, "indivíduo maltrapilho ou mal-educado", "que faz parte de maloca; salteador, bandido").
A barra, é verdade, pesou. Marcelo Ferreira Matos, 32, gerente do Cine Áurea, diz que "há uma falta de segurança muito grande" na rua Aurora, onde se localiza o cinema. "A gente vê coisas dessas que você assiste em programa policial."
Na paralela rua dos Gusmões, título de outra canção de Adoniran, o perigo menor é o do trânsito de motos e carros, que ameaçavam o compositor apaixonado -"Essa mulher sabe que por ela/ Sou capaz de tudo/ Sou capaz até/ De atravessar a rua dos Gusmões/ Lendo "Ali Babá e os 40 Ladrões'".
José Peloso Filho, 49, dono da Recar Motos, uma das inúmeras lojas especializadas em peças e motocicletas da via, diz que, à noite, "a rua é dos craqueiros". "A polícia até vem e espanta os viciados. Mas depois eles começam de novo."
Outro proprietário de loja na Gusmões, que prefere não ser identificado, afirma que os períodos mais problemáticos no local são quando os presos do Estado recebem permissão para deixar temporariamente as penitenciárias.
"Esse negócio de "duto" [indulto] de Páscoa, de Natal, quando soltam os presos, é o pior", ele diz. Por quê? "Solta essa turma, e você acha que eles vão procurar droga onde?"
Às vezes quase marginais, as pessoas humildes, além da própria cidade, eram tema para o compositor. O jornalista Ayrton Mugnaini Jr., autor de "Adoniran - Dá Licença de Contar" (ed. 34), cita como exemplo, entre outros, "Iracema", a moça da canção, que não sabia atravessar a rua e acabava atropelada na av. São João, transversal à r. dos Gusmões.
Uma das formas de falar desse pessoal era explicitando o português ruim, cheio de erros, que se tornou típico das músicas de Adoniran. "Todo mundo fala um pouco assim", afirma Mugnaini. "A gente mesmo, volta e meia, comete um errinho ou outro."
Outra característica de suas músicas, o humor, tem algo a ver também com a vida desses "maloqueiros" paulistas. "É como, de certo modo, o Nordeste. Há muitos humoristas por lá, não é verdade? É que, para viver naquelas condições, você tem que levar na brincadeira, senão não dá certo. Aqui é a mesma coisa", diz o jornalista.

Bugigangas
De Alagoas veio José Manoel Santana, 43, desde 1984 na cidade. Mora num sobrado de dois andares, com uma ou outra vidraça quebrada, na rua Major Diogo, citada em "Um Samba no Bexiga".
Numa banca diante de sua casa, apresenta os produtos que comercializa: um globo terrestre, um peixe de enfeite, prataria (R$ 100 por um jogo de três taças), bijuterias, jóias, aparelho de som, máquina de costura, violão, telefone, ventilador e um espelho, entre outros objetos.
"O bairro é muito bom", ele diz, enquanto Sônia Regina da Silva, 40, também camelô (como seu pai, que, ela diz, vendia ampulhetas), se aproxima. "São Paulo mudou bastante", afirma. "A população aumentou muito. Antigamente, aqui era tudo "intaliano"."
É para essa gente que Adoniran escrevia suas músicas, afirma Ernesto Paulelli, 92, o "Arnesto" do samba ("O Arnesto nos convidou/ Prum samba, ele mora no Brás/ Nós fumo não encontremo ninguém"), que hoje mora na Mooca.
Pessoas com quem, afinal, ele se identificava. "Ele cantava para o Zé Povinho. Mostrava o rosto risonho, mas no fundo era triste", diz Paulelli. "O Adoniran reclamava que não conseguia subir na vida. Dizia que era como se quisesse tentar entrar num elevador vazio, e o ascensorista dissesse: "Está lotado". E fechasse a porta."


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