São Paulo, Sexta-feira, 23 de Abril de 1999
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Antes tarde do que nunca

Fabiano Accorsi/Folha Imagem
Tom Zé em seu apartamento em São Paulo



Novos CDs de Tom Zé e Mestre Ambrósio chegam ao mercado após meses de atraso; ex-maldito, músico baiano sai consagrado do festival Abril pro Rock 99


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Sem querer, a edição 99 do festival recifense Abril pro Rock transformou-se, no final de semana passado, em palco para alguns ajustes de contas.
O baiano Tom Zé, 62, participante do grupo tropicalista de 1968 e a partir de então eterno enjeitado do mercado musical brasileiro, recebeu a maior consagração entre um elenco de 24 bandas e/ou artistas.
Foi aplaudido ininterruptamente, por mais de 15 minutos, por platéia de mais de 5.000 pessoas que recusava a entrada da banda seguinte e clamava por um bis.
Não veio o bis -segundo a produção, porque seu equipamento já fora desplugado-, mas o artista voltou ao palco para agradecer ("Vocês salvaram minha vida") e tomar nova saraivada de palmas.
Durante o próprio evento, fora lançado aqui seu disco mais recente, "Com Defeito de Fabricação" (98). Gravado e editado (há sete meses) nos EUA, pelo selo do também músico David Byrne, não chegara ao Brasil a despeito de uma coleção de reações hiperbólicas da crítica americana (leia abaixo).
"Post-Modern Platos", CD de remixes de "Com Defeito de Fabricação" por artistas jovens como Amon Tobin, High Llamas, Tortoise e Sean Lennon, continua sem previsão de lançamento nacional.
A esta altura, Tom Zé se prepara para embarcar ao país adotivo, em 10 de maio, para turnê por Nova York, Chicago, Los Angeles, San Francisco, Boston e Minneapolis.
Lá, sua banda de apoio será formada por integrantes do Tortoise, grupo de orientação eletrônica, de vanguarda caracterizada como "pós-rock". "Não entendi, pensei que eu ia abrir para eles. Talvez queiram conviver comigo, conversar, sei lá", comenta Tom Zé.
Situação similar à dele viveu no APR a banda Mestre Ambrósio. "Fuá na Casa de Cabral" (leia texto à direita) estava pronto desde julho de 1998, mas esperou até agora, segundo a gravadora Sony por dificuldades de mercado e "para aproveitar as festas juninas" -o forró é um dos motes do grupo.
Shows para grandes públicos como o do APR, Tom Zé se lembra de ter feito poucos. "Faço em locais menos "populáveis". Fiz shows grandes no Central Park (Nova York) e em Portugal. No Brasil, fiz nos 30 anos da tropicália, no Rio. Aqui, acho que foi só esse."
No discurso de agradecimento, ele emocionou o público ao dizer que foi "enterrado vivo" duas vezes, tinha medo de ser de novo e agora se sentia salvo. Ele explica:
"Minha mãe, que devia ter ido para a universidade, casou com um homem simples que era meu pai, em Irará. Quando nós nascemos, nós éramos uma figura estranha naquele tipo de imigração no espaço social. A família de minha mãe não queria que eu existisse".
O segundo enterro ele data em 70, por "circunstâncias comerciais do tropicalismo". "O mundo às vezes faz armadilhas com as quais você tem que aprender a lidar. Foi como se eu nem existisse mais."
"Falei com minha psiquiatra: "Doutora, é inacreditável como eu, depois de fazer esse show de muito sucesso, sinto uma alegria que não é do meu ego superando ninguém, mas de eu como parte da humanidade estar dando alegria a ela" ".
Tom Zé fala sobre os colegas tropicalistas. Sobre Gilberto Gil, com quem disputava as expectativas de uma indicação para o prêmio musical americano Grammy deste ano (vencido, afinal, por Gil):
"Hoje em dia não quero mais que ele seja desumano. Quero que seja humano e saiba que, mesmo eu sendo pequeno e ele grande, a gente concorre. Não quero mais dispensar ele de ser humano, esperar que seja um Deus. Não, ele é humano, concorre, disputa espaço".
Alguma rivalidade aí? "Fica parecendo que estou com inveja -e eu tenho inveja mesmo, por isso não quero que pareça. Pode escrever isso. Mas é uma inveja saudável".
A demora do novo CD em chegar ao Brasil passou por sua recusa em vê-lo lançado pela Natasha, de que Paula Lavigne, mulher do outro colega Caetano Veloso, é sócia.
"Apesar de eles serem muito gentis comigo, eu achava que se fosse deixaria de explorar um dos capitais mais interessantes que tenho, que é ter ficado de fora a vida toda. Foi uma poupança que fiz, não interessa se fui obrigado. Fiz e não me queixei, aguentei -porque aguentar é fogo."
Sobre a inversão de expectativas no APR -sua apresentação era esperada, antes de começar, como o "show cabeça" do festival-, ele comenta, citando a catarse de quando cantou "Taí": "De longe eu persigo isso, por toda minha carreira. Só queria fazer uma coisa popular, só sonhava com isso". Os olhos umedecem, ele vira o rosto.
"Meus músicos sabem que quando uma canção por acaso provoca alegria na platéia a ponto de ela gritar acabamos imediatamente a música. Você não pode fazer mais nada que a alegria. Qualquer coisa que venha depois é anticlímax".
De anticlímax também é sua relação com o microfone, outro sucesso no show de domingo -numa passagem, tirou o cinto da calça e se alternou entre fustigar a si e ao aparelho, como a metaforizar a relação de conflito com o sucesso.
Encerrado o show, ele enfrentou minutos de pop star, com cerco fechado de fãs, autógrafos, imprensa, rádio, televisão, lágrimas.
"Percebi a diferença pelos abraços. Há um tipo que chamo abraço Fafá de Belém. Ela abraça com os peitos, o osso ilíaco, os joelhos, as coxas. As outras pessoas botam o pescoço no seu ombro, empinam a bunda para trás, escondem o peito nos antebraços, se defendem."
"Quando a pessoa está muito alegre, não tem esses resguardos, se encosta. As moças todas me abraçaram assim, mesmo as cuidadosas, de TV, que têm medo de parecer que estão paquerando artista. Estavam só alegres, como quem encontra um irmão que voltou da guerra. Eu voltei da guerra."
Na ressaca, ele já fala de futuro: "Vou gravar uma porção de pequenos discos teoricamente independentes, com canções que por 20 anos fiz só em teatros, e que só podem ser feitas com violão e voz".
Quem os lançaria? "Fui pego na rua, num sinal fechado, pelo Kid Vinil, para ir para a Trama. Embora não tenha contrato -o contrato deles é com Byrne-, nesse dia eu entrei numa gravadora, que eu não tinha havia 20 anos. Pode ser que a Trama se interesse, senão faço sozinho e vendo em show."
Como concluindo, Tom Zé lança ainda um preceito seu: "É importante fazer um discurso não fechado. Muitas vezes as mensagens vêm fechadas e quase que ninguém pode intervir, furar a crosta de aço, a tartaruga em que artistas se protegem". É essa a voz de um velho perseguido pelo fracasso -e agora, quem diria?, pelo sucesso.

Disco: Com Defeito de Fabricação Artista: Tom Zé Lançamento: Trama Quanto: R$ 18, em média


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