São Paulo, quarta-feira, 23 de maio de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A eternidade e um dia

Hoje, a fama deixou de ser meritocrática; passou a ser literalmente democrática, para alegria geral das massas

P ERGUNTO ÀS vezes se vale a pena sair de casa. Pergunta retórica, claro. Eu sei que não vale. Mas então cedo, por motivos sentimentais: uma amiga exige "vida social" e eu, com um ânimo de cachorro, compareço a uma festa qualquer, povoada por dezenas de estranhos que exibem uma alegria efusiva que me deprime terrivelmente.
Aconteceu na passada semana, num bar de Lisboa, com vista sobre o Tejo. Fui, entrei, sentei. A idéia era beber e contar os minutos para regressar. Mas nem isso foi possível: ao meu lado, um casal comentava a identidade dos presentes, citando nomes e feitos com excitação adolescente. Minto. Citavam nomes. Mas faltavam os feitos. Naquele espaço, estavam "famosos" que eram "famosos" por serem "famosos".
O caso intrigou-me. Meti conversa, perguntei, ouvi bastante. Então um deles explicou-me que a sra. X estivera em um "reality show" televisivo durante vários meses, na companhia dos srs. Y e Z, que também ali andavam. Mas ninguém sabia exatamente que talento particular distinguia X, Y ou Z. Eles não cantavam. Não escreviam. Não pintavam. Obviamente, não pensavam. Mas mereciam admiração porque eram, simplesmente, "conhecidos".
O fenômeno é único na história da humanidade. Não vale a pena recuar a séculos distantes. Basta olhar para o século passado, sobretudo para o mundo pré-televisivo onde a "celebridade" era essencialmente meritocrática. Sim, formas rudimentares de publicidade também geraram os seus famosos: basta ler a prosa de Walter Winchell, o mais importante colunista da Big Apple (que inventou a expressão "Big Apple"), para perceber como se fabricavam, ou derrubavam, "celebridades". Mas, apesar de tudo, havia algo que distinguia a celebridade. Um talento para executar, mal ou bem, uma função singular. Ninguém estrelava cartazes apenas por "aparecer".
Hoje, a fama deixou de ser meritocrática; passou a ser literalmente democrática, para alegria geral das massas. Se o talento é elitista (e, por definição, não-igualitário), só uma fama desabitada de qualquer talento pode enterrar essa desigualdade. Eu sou famoso, tu és famoso, ele é famoso: toda a gente é famosa porque, no limite, ninguém é famoso.
Esclarecido e abismado, pedi licença à minha companhia e saí para a rua. Para respirar. Uma brisa quente passava pelo rio e, ao fundo, o mosteiro dos Jerónimos erguia-se na sua imponência renascentista. Aproximei-me do monumento e então reparei, sob a luz forte dos holofotes, em pormenores ridículos que normalmente escapam à luz do dia. Trabalhos microscópicos lavrados na pedra -folhas, figuração humana, motivos geométricos que, algures no século 16, um anônimo foi esculpindo durante dias, meses, anos, na certeza dolorosa de que poucos homens cá em baixo iriam notar.
Certeza dolorosa? Corrijo. Certeza luminosa. Quatro séculos atrás, um artífice sabia que a desatenção dos homens valia pouco quando ele tinha a atenção de toda a eternidade. No dias que passam, a eternidade vale nada quando toda a gente corre e se atropela pelo aplauso de um único dia.


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