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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A eternidade e um dia
Hoje, a fama deixou de ser meritocrática; passou a ser literalmente democrática, para alegria geral das massas
P
ERGUNTO ÀS vezes se vale a pena sair de casa. Pergunta retórica, claro. Eu sei que não vale.
Mas então cedo, por motivos sentimentais: uma amiga exige "vida social" e eu, com um ânimo de cachorro, compareço a uma festa qualquer,
povoada por dezenas de estranhos
que exibem uma alegria efusiva que
me deprime terrivelmente.
Aconteceu na passada semana,
num bar de Lisboa, com vista sobre
o Tejo. Fui, entrei, sentei. A idéia era
beber e contar os minutos para regressar. Mas nem isso foi possível:
ao meu lado, um casal comentava a
identidade dos presentes, citando
nomes e feitos com excitação adolescente. Minto. Citavam nomes.
Mas faltavam os feitos. Naquele espaço, estavam "famosos" que eram
"famosos" por serem "famosos".
O caso intrigou-me. Meti conversa, perguntei, ouvi bastante. Então
um deles explicou-me que a sra. X
estivera em um "reality show" televisivo durante vários meses, na
companhia dos srs. Y e Z, que também ali andavam. Mas ninguém sabia exatamente que talento particular distinguia X, Y ou Z. Eles não
cantavam. Não escreviam. Não pintavam. Obviamente, não pensavam.
Mas mereciam admiração porque
eram, simplesmente, "conhecidos".
O fenômeno é único na história da
humanidade. Não vale a pena recuar
a séculos distantes. Basta olhar para
o século passado, sobretudo para o
mundo pré-televisivo onde a "celebridade" era essencialmente meritocrática. Sim, formas rudimentares
de publicidade também geraram os
seus famosos: basta ler a prosa de
Walter Winchell, o mais importante
colunista da Big Apple (que inventou a expressão "Big Apple"), para
perceber como se fabricavam, ou
derrubavam, "celebridades". Mas,
apesar de tudo, havia algo que distinguia a celebridade. Um talento
para executar, mal ou bem, uma função singular. Ninguém estrelava cartazes apenas por "aparecer".
Hoje, a fama deixou de ser meritocrática; passou a ser literalmente democrática, para alegria geral das
massas. Se o talento é elitista (e, por
definição, não-igualitário), só uma
fama desabitada de qualquer talento
pode enterrar essa desigualdade. Eu
sou famoso, tu és famoso, ele é famoso: toda a gente é famosa porque,
no limite, ninguém é famoso.
Esclarecido e abismado, pedi licença à minha companhia e saí para
a rua. Para respirar. Uma brisa
quente passava pelo rio e, ao fundo,
o mosteiro dos Jerónimos erguia-se
na sua imponência renascentista.
Aproximei-me do monumento e então reparei, sob a luz forte dos holofotes, em pormenores ridículos que
normalmente escapam à luz do dia.
Trabalhos microscópicos lavrados
na pedra -folhas, figuração humana, motivos geométricos que, algures no século 16, um anônimo foi esculpindo durante dias, meses, anos,
na certeza dolorosa de que poucos
homens cá em baixo iriam notar.
Certeza dolorosa? Corrijo. Certeza luminosa. Quatro séculos atrás,
um artífice sabia que a desatenção
dos homens valia pouco quando ele
tinha a atenção de toda a eternidade.
No dias que passam, a eternidade
vale nada quando toda a gente corre
e se atropela pelo aplauso de um
único dia.
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