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Teatro e polêmicas ofuscaram prosa de Nelson, diz Ruy Castro
DA REPORTAGEM LOCAL
Para o jornalista Ruy Castro,
Nelson Rodrigues se tornou,
nos últimos anos, "com justiça,
objeto de adoração".
Autor da biografia "O Anjo
Pornográfico" (Companhia das
Letras) e organizador, pela
mesma editora, da obra em
prosa do pernambucano, ele
diz que os romances e crônicas
encontraram obstáculos para
seu reconhecimento por causa
do caráter polêmico de Nelson
e da própria qualidade de sua
dramaturgia.
"Seu teatro, que mesmo os
piores inimigos dele nunca se
atreveram a denegrir, acabou
obscurecendo de certa forma o
resto de sua obra."
(RAFAEL CARIELLO)
FOLHA - Na introdução de seu "O
Anjo Pornográfico", em 1992, você
dizia que os que então sabiam do
real valor da crônica de Nelson "não
se conformam com que o mundo
não saiba". E falava de uma reabilitação próxima. Já é possível dizer
que Nelson Rodrigues recebe o reconhecimento literário que merece?
RUY CASTRO - Essa era a impressão que eu tinha em 1991, ao
viajar pelo país com meu livro
"Chega de Saudade". Quando
me perguntavam qual seria o
"próximo projeto" e eu falava
que estava trabalhando na biografia de Nelson Rodrigues,
sentia os rostos se iluminando
à minha volta. Pelo visto, havia
uma forte demanda reprimida
por Nelson. Depois, ao avançar
na investigação que resultaria
em "O Anjo Pornográfico", comecei a me convencer de que o
conhecimento da vida de Nelson jogaria uma nova luz sobre
a obra dele. Foi o que aconteceu. Hoje, Nelson está incorporado definitivamente à cultura
brasileira. Cai no vestibular, é
tema de trabalho escolar e recordista em teses de mestrado
e doutorado. Sei disso porque
recebo uma quantidade delas, e
não tenho nem tempo para ler.
FOLHA - A que se deveu essa incompreensão sobre o valor da obra
do Nelson?
CASTRO - Acho que um dos
principais empecilhos era o fato de Nelson estar vivo, presente diariamente na imprensa e
na televisão, provocando e polemizando com todo mundo.
Não havia um distanciamento
para a compreensão de seu valor. Um dos veículos mais anti-Nelson, por exemplo, era o
"Pasquim" -toda semana era
um cacete. Eu devia ser o único
colaborador eventual do jornal
que falava bem dele e, para ser
justo, devo dizer que nunca fui
censurado. Quando Nelson
morreu, houve um natural período de refluxo e, em 1992, já
com mais de dez anos de distanciamento, as pessoas pareciam prontas a pelo menos
aceitar conhecê-lo um pouco
melhor. Mas nem eu poderia
imaginar que ele se tornasse,
com justiça, um objeto de tanta
adoração.
FOLHA - Faz sentido comparar essa
dificuldade imediata em se perceber
seu valor ao que aconteceu também
com Machado de Assis? (Penso no
fato de que a ironia machadiana só
veio a ser plenamente reconhecida
décadas depois de sua morte)
CASTRO - Sim, por que não?
Nelson, como Machado, é um
autor que melhora com a leitura. Quanto mais se lê, mais se
admira e se gosta dele.
Seu teatro, que mesmo os
piores inimigos dele nunca se
atreveram a denegrir, acabou
obscurecendo de certa forma o
resto de sua obra. Mas Nelson
foi grande também no romance, no conto e na crônica. Na
verdade, o grande palco de Nelson foi mais a redação de jornal
do que o palco propriamente
dito do teatro. Toda a sua prosa
está contaminada (no melhor
sentido) pelo jornal.
FOLHA - A crônica, em Nelson, é
tão boa quanto o teatro?
CASTRO - Nelson não era um
cronista exatamente como Rubem Braga, Fernando Sabino
ou Paulinho Mendes Campos.
Ou não era sempre -porque,
quando queria, também era. Eu
o vejo mais como um polemista. Mas, nesse sentido, seu teatro também podia ser enquadrado nessa categoria, de discussão de idéias. Tudo nele, no
entanto, tinha um tão forte
conteúdo poético -uma poesia
dramática, como observou Manuel Bandeira- que, pronto, já
arrebentou com qualquer tentativa de classificação...
FOLHA - É possível falar de uma incompreensão da obra de Nelson
também no cinema? (Em seu livro
você cita o fato de ele achar que "A
Falecida", do Leon Hirszman, era demasiadamente "preto-e-branco")
Como vê as diversas adaptações de
Nelson para o cinema?
CASTRO - Quando o Nelson se
referia a "A Falecida" ser muito
em "preto-e-branco", queria
dizer que o Leon Hirszman tinha desidratado o humor original da peça e ficado só com o lado sombrio, mais "cinema novo", da história.
Ele detestava o filme, que
ainda lhe deu grande prejuízo,
porque tinha investido dinheiro nele. Concordo com o Nelson; eu também mal consigo
ver o filme, apesar da Fernanda
Montenegro. O que eu gosto
mesmo é do "Boca de Ouro", do
Nelson Pereira dos Santos, dirigido em boa parte pelo Jece Valadão. Outro filme que eu gostaria muito de rever e a que não
assisto desde a época, mas do
qual tenho ótima recordação, é
o "Bonitinha, Mas Ordinária"
de 1962 -quem tiver uma cópia, estou aceitando. E gosto
também dos dois filmes do Jabor, "Toda Nudez Será Castigada" e "O Casamento". Quanto
aos demais, acho que quase todos "traem" Nelson, no sentido
de que são pornochanchadas
óbvias demais, cheias de palavrões que não estão nas peças.
Acho que os dois melhores
Nelsons de todos os tempos foram feitos pela TV Globo: a série "A Vida como Ela É...", dirigida por Daniel Filho, e a minissérie "Engraçadinha", com
Alessandra Negrini e Claudia
Raia, produzida pelo Carlos
Manga. A própria idéia de ter
Nelson na TV Globo já revela o
quanto ele se tornou um patrimônio popular do Brasil.
FOLHA - Você diz que parecia estranho para a geração do cinema novo
tratar do subúrbio carioca quando
seus "personagens" privilegiados
eram o cangaceiro e o favelado. O
que Nelson revelava sobre o Brasil
ao tratar dos dramas de certa classe
média suburbana?
CASTRO - O cinema novo, feito
por rapazes cariocas de classe
média e com formação universitária, achava que o verdadeiro
Brasil estava no Nordeste e nas
favelas. Era difícil para eles entender o universo de Brás de Pina, Engenho de Dentro, Irajá
-estava muito perto e, ao mesmo tempo, muito longe. Mas,
para Nelson, esse é que era o
Brasil profundo.
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