São Paulo, sábado, 23 de junho de 2007

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Teatro e polêmicas ofuscaram prosa de Nelson, diz Ruy Castro

DA REPORTAGEM LOCAL

Para o jornalista Ruy Castro, Nelson Rodrigues se tornou, nos últimos anos, "com justiça, objeto de adoração".
Autor da biografia "O Anjo Pornográfico" (Companhia das Letras) e organizador, pela mesma editora, da obra em prosa do pernambucano, ele diz que os romances e crônicas encontraram obstáculos para seu reconhecimento por causa do caráter polêmico de Nelson e da própria qualidade de sua dramaturgia.
"Seu teatro, que mesmo os piores inimigos dele nunca se atreveram a denegrir, acabou obscurecendo de certa forma o resto de sua obra." (RAFAEL CARIELLO)  

FOLHA - Na introdução de seu "O Anjo Pornográfico", em 1992, você dizia que os que então sabiam do real valor da crônica de Nelson "não se conformam com que o mundo não saiba". E falava de uma reabilitação próxima. Já é possível dizer que Nelson Rodrigues recebe o reconhecimento literário que merece?
RUY CASTRO
- Essa era a impressão que eu tinha em 1991, ao viajar pelo país com meu livro "Chega de Saudade". Quando me perguntavam qual seria o "próximo projeto" e eu falava que estava trabalhando na biografia de Nelson Rodrigues, sentia os rostos se iluminando à minha volta. Pelo visto, havia uma forte demanda reprimida por Nelson. Depois, ao avançar na investigação que resultaria em "O Anjo Pornográfico", comecei a me convencer de que o conhecimento da vida de Nelson jogaria uma nova luz sobre a obra dele. Foi o que aconteceu. Hoje, Nelson está incorporado definitivamente à cultura brasileira. Cai no vestibular, é tema de trabalho escolar e recordista em teses de mestrado e doutorado. Sei disso porque recebo uma quantidade delas, e não tenho nem tempo para ler.

FOLHA - A que se deveu essa incompreensão sobre o valor da obra do Nelson?
CASTRO
- Acho que um dos principais empecilhos era o fato de Nelson estar vivo, presente diariamente na imprensa e na televisão, provocando e polemizando com todo mundo. Não havia um distanciamento para a compreensão de seu valor. Um dos veículos mais anti-Nelson, por exemplo, era o "Pasquim" -toda semana era um cacete. Eu devia ser o único colaborador eventual do jornal que falava bem dele e, para ser justo, devo dizer que nunca fui censurado. Quando Nelson morreu, houve um natural período de refluxo e, em 1992, já com mais de dez anos de distanciamento, as pessoas pareciam prontas a pelo menos aceitar conhecê-lo um pouco melhor. Mas nem eu poderia imaginar que ele se tornasse, com justiça, um objeto de tanta adoração.

FOLHA - Faz sentido comparar essa dificuldade imediata em se perceber seu valor ao que aconteceu também com Machado de Assis? (Penso no fato de que a ironia machadiana só veio a ser plenamente reconhecida décadas depois de sua morte)
CASTRO
- Sim, por que não? Nelson, como Machado, é um autor que melhora com a leitura. Quanto mais se lê, mais se admira e se gosta dele. Seu teatro, que mesmo os piores inimigos dele nunca se atreveram a denegrir, acabou obscurecendo de certa forma o resto de sua obra. Mas Nelson foi grande também no romance, no conto e na crônica. Na verdade, o grande palco de Nelson foi mais a redação de jornal do que o palco propriamente dito do teatro. Toda a sua prosa está contaminada (no melhor sentido) pelo jornal.

FOLHA - A crônica, em Nelson, é tão boa quanto o teatro?
CASTRO
- Nelson não era um cronista exatamente como Rubem Braga, Fernando Sabino ou Paulinho Mendes Campos. Ou não era sempre -porque, quando queria, também era. Eu o vejo mais como um polemista. Mas, nesse sentido, seu teatro também podia ser enquadrado nessa categoria, de discussão de idéias. Tudo nele, no entanto, tinha um tão forte conteúdo poético -uma poesia dramática, como observou Manuel Bandeira- que, pronto, já arrebentou com qualquer tentativa de classificação...

FOLHA - É possível falar de uma incompreensão da obra de Nelson também no cinema? (Em seu livro você cita o fato de ele achar que "A Falecida", do Leon Hirszman, era demasiadamente "preto-e-branco") Como vê as diversas adaptações de Nelson para o cinema?
CASTRO
- Quando o Nelson se referia a "A Falecida" ser muito em "preto-e-branco", queria dizer que o Leon Hirszman tinha desidratado o humor original da peça e ficado só com o lado sombrio, mais "cinema novo", da história. Ele detestava o filme, que ainda lhe deu grande prejuízo, porque tinha investido dinheiro nele. Concordo com o Nelson; eu também mal consigo ver o filme, apesar da Fernanda Montenegro. O que eu gosto mesmo é do "Boca de Ouro", do Nelson Pereira dos Santos, dirigido em boa parte pelo Jece Valadão. Outro filme que eu gostaria muito de rever e a que não assisto desde a época, mas do qual tenho ótima recordação, é o "Bonitinha, Mas Ordinária" de 1962 -quem tiver uma cópia, estou aceitando. E gosto também dos dois filmes do Jabor, "Toda Nudez Será Castigada" e "O Casamento". Quanto aos demais, acho que quase todos "traem" Nelson, no sentido de que são pornochanchadas óbvias demais, cheias de palavrões que não estão nas peças. Acho que os dois melhores Nelsons de todos os tempos foram feitos pela TV Globo: a série "A Vida como Ela É...", dirigida por Daniel Filho, e a minissérie "Engraçadinha", com Alessandra Negrini e Claudia Raia, produzida pelo Carlos Manga. A própria idéia de ter Nelson na TV Globo já revela o quanto ele se tornou um patrimônio popular do Brasil.

FOLHA - Você diz que parecia estranho para a geração do cinema novo tratar do subúrbio carioca quando seus "personagens" privilegiados eram o cangaceiro e o favelado. O que Nelson revelava sobre o Brasil ao tratar dos dramas de certa classe média suburbana?
CASTRO
- O cinema novo, feito por rapazes cariocas de classe média e com formação universitária, achava que o verdadeiro Brasil estava no Nordeste e nas favelas. Era difícil para eles entender o universo de Brás de Pina, Engenho de Dentro, Irajá -estava muito perto e, ao mesmo tempo, muito longe. Mas, para Nelson, esse é que era o Brasil profundo.


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