São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2010

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MARCELO COELHO

Pior é melhor


Eis que o craque evangélico, bom moço por excelência, dá uma cotovelada e é expulso de campo!


MAU PROFETA, eu estava prevendo um empate no jogo entre Brasil e Costa do Marfim. Seria melhor, pensei: elimine-se logo a Seleção do Dunga, e libero-me da chateação daqueles passes laterais que ocuparam tanto tempo do jogo contra a Coreia do Norte.
Coreia do Norte. Santo Deus. Veio o jogo contra a Costa do Marfim, e tivemos uma vitória muito bonita. Mais do que isso: foi muito interessante do ponto de vista moral, por vários motivos.
Antes de tudo, o gol de Luis Fabiano com a ajuda do braço não deixa de propor uma questão filosófica. Que o lance era duvidoso, ninguém discute. Mas que juiz iria ter disposição para anular um gol daqueles?
Eis um caso em que o máximo rigor na obediência às regras acarretaria quase que uma traição ao espírito do futebol. O talento e a estética falaram mais alto do que a lei. A ética, se quisermos colocar nesses termos, mostrou os seus limites.
O toque de ombro, disse Luís Fabiano, foi "involuntário". Não acho que sua declaração tenha sido irônica, nem abertamente cínica como a famosa "mão de Deus" de Maradona. Luís Fabiano pode mesmo ter agido por reflexo, sem dolo, por assim dizer.
Ou não. Mas seria um crime dizer que o gol não valeu. Num mundo perfeito, do ponto de vista moral, imagino a seguinte cena: o juiz anula o gol de Luís Fabiano, a Costa do Marfim reinicia o jogo, Drogba pega a bola e faz um gol contra de propósito, em homenagem ao talento do adversário.
Mas a Costa do Marfim não estava para gentilezas, e aí vem o segundo aspecto "moral" que deu especial interesse à partida de domingo.Como todo sujeito de bons princípios, tendo a ter pena dos times mais fracos. Numa espécie de reflexo condicionado da minha cultura cristã de esquerda, persigo a derrota como uma formiga atrás do mel. Desde que não nos tirem o título de campeões do mundo, é claro.
Pois bem, os jogadores da Costa do Marfim não tinham nada de coitadinhos; com o jogo já perdido, pareciam querer a revanche ali mesmo, em sangue. Leio no jornal do dia seguinte que se irritaram; aceitariam perder, mas nunca a humilhação do ""olé" que se esboçou.
Não é desculpa -ainda que possa servir, como dizem os católicos, como tema "para reflexão". Abandono o campo católico, entretanto, para falar de Kaká. Eis que o craque evangélico, bom moço por excelência, perde as estribeiras, dá uma cotovelada e é expulso de campo!
Depois de tantos jogadores entregues à luxúria, à intemperança, à preguiça, ao orgulho e a não sei mais o quê, a monástica disciplina de Dunga e o jeito certinho de Kaká contavam com minha simpatia. Mais simpatia dedico, todavia, ao tranco -até que sutil- que nosso atacante deu no marfinense. Dizem que a expulsão foi injusta; não importa. Ser expulso melhora Kaká.
"Não seja bonzinho: seja real". Este é o título de um livro de um autoajuda lançado há pouco pela editora Madras. Seu autor é Kelly Bryson, terapeuta familiar e divulgador dos princípios da Comunicação Não Violenta (CNV). Até na Bósnia e em Israel ele encontrou ouvintes atentos, imagine.
Como em tantos livros do gênero, misturam-se historinhas persuasivas, toques de humor e aquele tipo de verdades que correspondem exatamente ao que queremos ouvir. Espero ainda assim aproveitar, ou esquecer, uma lista que surge logo no começo do livro. Intitula-se "Sete Passos para o Autossacrifício, ou Como Tornar-se um Capacho".
Por exemplo: "ouça os outros mais do que gostaria", "faça o possível para evitar que os outros pirem"; "adote o lema: "eu por último'". O resultado, diz Kelly Bryson, será que você terminará desenvolvendo muita raiva dos outros, sem melhorar-lhes a vida. E ainda corre o risco de desenvolver doenças psicossomáticas.
O último ponto é convenientemente criticado pela ensaísta Barbara Ehrenreich, em outro livro que acaba indo na mesma direção. Trata-se de "Smile or Die" ("Sorria ou Morra"), uma crítica à ideologia do pensamento positivo- que no fundo faz de você, do seu pessimismo, de seus ressentimentos, o grande culpado por estar sem emprego ou com alguma enfermidade terminal.
De fato. Meu pessimismo no futebol, por exemplo, em nada mudou o resultado da partida.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris




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