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Mistério da arte reside na nota que falta
DAVID MAMET
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
Minhas aulas de piano começaram há 50 anos. Meu
professor era um austríaco severo, Isadore Buchalter. Ele disse a
meus pais que tinha esperanças
quanto a mim, que eu tinha certo
dom para a música, mas que não
conseguia aprender a ler as notas.
Mais de 40 anos depois, me dei
conta de que meu problema não
era a preguiça, mas o fato de não
conseguir enxergar as notas. Era
míope ao extremo. Ganhei meus
primeiros óculos aos oito anos,
mas já tinha desistido do piano.
Minhas aulas foram retomadas
por volta de 1963, quando tive a
grande sorte de conhecer Louise
Gold. Ela me fez sentar e tocar
tríades e tríades com a oitava, com
as duas mãos, subindo e descendo
pelo teclado. Ela usou esse exercício simples para me mostrar o ciclo de quintas e suas adições, subtrações, alterações e inversões,
que formam a base da teoria musical. Percebi, então, que as aulas
de piano que tive na infância me
haviam ensinado a tocar sem ler
ou então a fazer de conta que eu
estava lendo -em outras palavras, a tocar de ouvido.
Certa tarde toquei a quatro
mãos com Randy Newman. Desculpei-me por estar correndo.
Disse que eu era tão burro em termos de música que quase sentia
necessidade de "contar". Ele parou de tocar por um instante, me
olhou com expressão de incompreensão e disse: "Todo mundo
conta". Ele também me ensinou a
ouvir a nota de passagem, a prestar atenção para ouvi-la, já que é
ela que move a música.
Joel Silver produziu vários dos
discos de minha mulher, e dele eu
recebi uma dica inestimável:
"Deixe a terça de fora. A gente vai
ouvi-la, mesmo assim".
A nota de passagem e a terça retirada abriram todo um novo
mundo para mim. Comecei a
criar coragem (embora com receio), a rejeitar a primeira inversão e as claves de fá e dó maior.
Os estóicos nos aconselharam a
manter nossos preceitos filosóficos simples e em pouco número,
já que podemos ter necessidade
de consultá-los a qualquer momento. Essas dicas se tornaram
meus princípios filosóficos e me
obrigaram a ir mais devagar, tomando tempo para pensar.
Omissão criativa
As pessoas dizem que a grande
genialidade de Nat Cole estava na
capacidade de acompanhar a si
mesmo no piano, no fato de que
compreendia esse mais delicado e
intrincado dueto e sua necessidade de espaço, de elegância. "A
gente ouve, de qualquer maneira." Esse é o gênio de Bach e a exigência avassaladora da dramaturgia -essa compreensão, ou a ausência dela, é o que separa aqueles
que sabem escrever dos que realmente sabem escrever: quanto se
pode retirar, mantendo o sentido
da composição?
Tchekov removia a trama. Pinter, elaborando ainda mais, removia a história, a narrativa; Beckett,
a caracterização. Nós a ouvimos
de qualquer maneira.
Faz parte de nossa natureza elaborar, estimar, prever -correr
antes do evento. Esse é o significado da consciência; todo o resto é
instinto. Bach nos permite correr
antes, e suas relações, como as de
Aristóteles, são tão inevitáveis
(como precisam ser, dadas as restrições da forma ocidental de
composição) e tão surpreendentes quanto seu gênio complexo.
Assim, nos sentimos deleitados e
instruídos, como em Freud, de
maneira não verbal, quanto às variedades da percepção, possibilidade e conclusão. Somos melhorados. Ouvindo Bach, nossa consciência foi recompensada, refrescada, repreendida e acalmada.
Tanto em Bach como em Sófocles, o peso da consciência é posto
momentaneamente de lado.
Tanto o moderno drama legítimo (Pirandello, Ionesco) quanto
o trash da arte performática constroem sobre a revelação de que a
omissão é uma forma de criação
-que ouvimos a terça de qualquer maneira, que o público contribuirá com a trama. Mas nossa
experiência disso pode apenas, na
melhor das hipóteses, ser uma
alegria convencida.
Ouvimos algum pianista de
concerto improvisar cataratas de
arpejos, ou assistimos a performances pueris e, embora possamos sair do teatro sorrindo, saímos mais pobres, pois celebramos não o divino, mas a capacidade do não-inspirado de imitar o
divino. Isso é apenas idolatria.
Comprazemo-nos tanto no que
nos é familiar quanto no surpreendente. Música, teatro, circo,
a criação de todas as artes programáticas vem da compreensão
pesquisada ou intuída da natureza da percepção humana, tese, antítese e síntese: posso voar de um
trapézio a outro. Mas será que
consigo dar uma cambalhota tripla? Sim. Não. Sim.
Boa parte da arte moderna ou é
uma reafirmação servil da forma
(comédia musical) ou sua rejeição
servil ("action painting"). Sim, é
verdade que a vida seria melhor se
todos nós fôssemos um pouco
mais bondosos, e é verdade que a
pintura atirada no ar cairá ao
chão. As duas afirmações são verdadeiras, mas quem teria desconfiado que fossem dignas de nota?
Os mandamentos são os mesmos: deixe a terça de fora, concentre-se na nota que falta. Sim,
sabemos que, na clave de sol, um
acorde em dó gostaria de evoluir
para um sol. Como ele chega lá? O
ardor na busca pela resposta explica o gênio de Beckett e também
de Vernon Duke, Prokofiev e
Kurt Weill. A pergunta fascinante
da arte: o que há entre lá e si?
Tradução Clara Allain
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