São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2004

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"QUERIDO ESTRANHO"

Palavras são fortes, mas falta cinema

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Querido Estranho" habita a zona dos filmes sobre a família em colapso. Nesse sentido, podemos examiná-lo ao lado de obras como "Setembro" (de Woody Allen) e "Festa de Família" (de Thomas Vinterberg). Em "Festa de Família" e "Setembro", pessoas castigarão os pais por meio de armamento pesado -a memória- e mitos serão destroçados.
Em "Querido Estranho", de Ricardo Pinto e Silva, o mito existe de modo diferente. Ao mesmo tempo em que é visto como um ser de mofo, o pai (Daniel Filho) funciona como espinhoso dispositivo de consciência: em seu aniversário, celebrará a própria decadência, mas apontará o que há de estéril e mesquinho à sua volta, incluindo mulher e filhos. Sarcástico e bêbado, castigará mais do que será castigado.
Ainda assim, os três filmes se desenrolam de formas similares. Durante um dia de comemoração ou reunião, familiares se machucam, em ambientes relativamente fechados.
No clímax de "Setembro", acaba a luz. Coisa idêntica ocorre quando a noite cai em "Querido Estranho", obra na qual a casa parece transpirar o que há de antiquado e melancólico em torno da família de classe média que nela vive. Esses filmes florescem a partir de temas que não nasceram com o cinema, mas que sugerem, se não é que exigem, manipulação e construção fortemente cinematográficas.
Deixando mais claro: em "Festa de Família", sabotar e desmascarar o pai tinha a ver mesmo com o ato de romper com o "velho", tirar as máscaras do próprio cinema (um hotel é devassado por câmera digital). Em "Setembro", o princípio era o contrário: homenageava-se um legado do olhar, o de Bergman, reciclando-o. Ambos se aproveitam com fome do cinema.
Em "Querido Estranho", não vigora um projeto cinematográfico de impacto, nem de reverência seguida de reciclagem. Não há, na verdade, projeto algum. Aqui, o cinema é teatro filmado como TV. A cadência dos movimentos, a comunicação entre personagens e objetos e a tensão espacial são elementos regulados por códigos do teatro. O tratamento que esses itens sofrerão via linguagens de câmera e de montagem é ajustado no molde da TV.
Daí que surge estranha sensação de formato desperdiçado e de filme no qual imagens não estão à altura das palavras, envenenadas e, em geral, potentes.


Querido Estranho
  
Produção: Brasil, 2004
Direção: Ricardo Pinto e Silva
Com: Daniel Filho, Ana Beatriz Nogueira
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, Cineclube DirecTV, Pátio Higienópolis e circuito



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