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RODAPÉ
Lúcia Miguel Pereira e a militância crítica
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Autora dos clássicos "Machado de Assis - Estudo Crítico-biográfico" (1936) e "Prosa de Ficção - De 1870 a 1920" (1950),
casada com o biógrafo de Pedro
1º, Otávio Tarquínio de Souza,
Lúcia Miguel Pereira (1901-1959)
foi também crítica militante, produzindo até as vésperas do acidente aéreo que matou a ambos,
ela e o marido, num vôo do Rio
para São Paulo.
Há cerca de dez anos, uma seleção abrangente de seus artigos de
imprensa, selecionados e organizados por Luciana Viégas, reanimou com "um sopro de vida
aquele mundo desfeito". A editora carioca Graphia foi a responsável pelo lançamento de "A Leitora
e Seus Personagens (1931-1943)" e
"Escritos de Maturidade (1944-1959)", que ganha, agora, uma segunda edição.
A sucessão de artigos que compõem os dois volumes delineia
uma personalidade crítica arguta
e sua evolução: da leitora fina, de
matriz católica e conservadora,
embebida até a alma, como seus
contemporâneos, em cultura
francesa, respondendo, de pronto
e precisamente, à efervescência da
prosa e poesia brasileiras na década de 1930 -foco do primeiro livro- a uma escritora que se deixava marcar pela novidade dos
tempos do pós-guerra, com a
atenção recém-desperta pelos autores anglo-americanos, testemunho de uma nova hegemonia na
cultura mundial, e discutindo
com empenho a posição das mulheres na literatura.
Não faltam, entre os 74 textos
reunidos em "Escritos de Maturidade", vestígios do veio mais significativo da produção de Lúcia
Miguel Pereira, o ensaístico. O livro traz uma seção machadiana,
reunindo nove artigos sobre o autor de "Memórias Póstumas de
Brás Cubas" e um trabalho mais
alentado, ocupando-se da obra de
Lima Barreto (1881-1922).
Mas o gosto e a graça do volume
estarão antes em reviver "a atmosfera em que [ela, leitora,] se
moveu: as preocupações que a
dominaram, as idéias em que
acreditou, as ambições que a guiaram", em suas palavras, meio século passado.
Nas entrelinhas do estilo clássico, claro e sempre composto, à
imagem dos retratos que dela ficaram, aprendemos com idéias
rapidamente esboçadas (como a
presença dos bacharéis, discreta
no primeiro Machado, incisiva,
no final, ou o contraponto entre
as mulheres de Alencar e as machadianas) e com a revalorização
de obras perdidas no desconhecimento (caso de "O Bom Crioulo",
de Adolfo Caminha, ou "Dona
Guidinha do Poço", de Manuel de
Oliveira Paiva). Mas, ainda assim,
a janela mais convidativa que o
volume abre é, em grande parte,
decorrente deste hiato temporal,
que torna tanto seu interesse justificado pelo círculo de Bloomsbury (dedica cinco textos a Virginia Woolf e resenha os "Vitorianos Eminentes", de Lytton Strachey), quanto sua hipervalorização da, hoje obscura, romancista
Rosamond Lehmann, reveladores.
A curiosidade crescente pelos
vizinhos latino-americanos ou a
solidariedade às vítimas das atrocidades franquistas combinam-se
a traços renitentes de uma visão
aristocrática do mundo do espírito: em "Mercancia e Literatura",
por exemplo, Lúcia Miguel Pereira faz uma defesa fervorosa da arte "biscoito fino" contra a ganância da indústria editorial, produtora prolífica de lixo lucrativo, e,
em "Traduções", arrisca a polêmica tese da inutilidade de publicar as grandes obras da literatura
ocidental em português, dada sua
natureza complexa, compreensível em sua grandeza apenas no
original.
Suas leituras dos autores russos
ou de Franz Kafka (1883-1924), no
entanto, serviam-se do filtro das
traduções francesas, e um dos artigos mais interessantes do livro,
"A Propósito de Kafka", descreve
sua redescoberta do mestre tcheco a partir da leitura de seu diário,
em que descobre, pela primeira
vez, a importância do seu corpo-a-corpo com a língua, oculto e
pasteurizado nas versões francesas. Neste pêndulo entre a biblioteca e o jornal, inteligência e sensibilidade, ontem e hoje, a voz crítica de Lúcia Miguel Pereira preserva o apelo, maduro, mas sempre
fresco.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Escritos da Maturidade
Autor: Lúcia Miguel Pereira
Editora: Graphia/Fundação Biblioteca Nacional
Quanto: R$ 45 (360 págs.)
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