São Paulo, sábado, 23 de julho de 2005

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RODAPÉ

Lúcia Miguel Pereira e a militância crítica

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Autora dos clássicos "Machado de Assis - Estudo Crítico-biográfico" (1936) e "Prosa de Ficção - De 1870 a 1920" (1950), casada com o biógrafo de Pedro 1º, Otávio Tarquínio de Souza, Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) foi também crítica militante, produzindo até as vésperas do acidente aéreo que matou a ambos, ela e o marido, num vôo do Rio para São Paulo.
Há cerca de dez anos, uma seleção abrangente de seus artigos de imprensa, selecionados e organizados por Luciana Viégas, reanimou com "um sopro de vida aquele mundo desfeito". A editora carioca Graphia foi a responsável pelo lançamento de "A Leitora e Seus Personagens (1931-1943)" e "Escritos de Maturidade (1944-1959)", que ganha, agora, uma segunda edição.
A sucessão de artigos que compõem os dois volumes delineia uma personalidade crítica arguta e sua evolução: da leitora fina, de matriz católica e conservadora, embebida até a alma, como seus contemporâneos, em cultura francesa, respondendo, de pronto e precisamente, à efervescência da prosa e poesia brasileiras na década de 1930 -foco do primeiro livro- a uma escritora que se deixava marcar pela novidade dos tempos do pós-guerra, com a atenção recém-desperta pelos autores anglo-americanos, testemunho de uma nova hegemonia na cultura mundial, e discutindo com empenho a posição das mulheres na literatura.
Não faltam, entre os 74 textos reunidos em "Escritos de Maturidade", vestígios do veio mais significativo da produção de Lúcia Miguel Pereira, o ensaístico. O livro traz uma seção machadiana, reunindo nove artigos sobre o autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e um trabalho mais alentado, ocupando-se da obra de Lima Barreto (1881-1922).
Mas o gosto e a graça do volume estarão antes em reviver "a atmosfera em que [ela, leitora,] se moveu: as preocupações que a dominaram, as idéias em que acreditou, as ambições que a guiaram", em suas palavras, meio século passado.
Nas entrelinhas do estilo clássico, claro e sempre composto, à imagem dos retratos que dela ficaram, aprendemos com idéias rapidamente esboçadas (como a presença dos bacharéis, discreta no primeiro Machado, incisiva, no final, ou o contraponto entre as mulheres de Alencar e as machadianas) e com a revalorização de obras perdidas no desconhecimento (caso de "O Bom Crioulo", de Adolfo Caminha, ou "Dona Guidinha do Poço", de Manuel de Oliveira Paiva). Mas, ainda assim, a janela mais convidativa que o volume abre é, em grande parte, decorrente deste hiato temporal, que torna tanto seu interesse justificado pelo círculo de Bloomsbury (dedica cinco textos a Virginia Woolf e resenha os "Vitorianos Eminentes", de Lytton Strachey), quanto sua hipervalorização da, hoje obscura, romancista Rosamond Lehmann, reveladores.
A curiosidade crescente pelos vizinhos latino-americanos ou a solidariedade às vítimas das atrocidades franquistas combinam-se a traços renitentes de uma visão aristocrática do mundo do espírito: em "Mercancia e Literatura", por exemplo, Lúcia Miguel Pereira faz uma defesa fervorosa da arte "biscoito fino" contra a ganância da indústria editorial, produtora prolífica de lixo lucrativo, e, em "Traduções", arrisca a polêmica tese da inutilidade de publicar as grandes obras da literatura ocidental em português, dada sua natureza complexa, compreensível em sua grandeza apenas no original.
Suas leituras dos autores russos ou de Franz Kafka (1883-1924), no entanto, serviam-se do filtro das traduções francesas, e um dos artigos mais interessantes do livro, "A Propósito de Kafka", descreve sua redescoberta do mestre tcheco a partir da leitura de seu diário, em que descobre, pela primeira vez, a importância do seu corpo-a-corpo com a língua, oculto e pasteurizado nas versões francesas. Neste pêndulo entre a biblioteca e o jornal, inteligência e sensibilidade, ontem e hoje, a voz crítica de Lúcia Miguel Pereira preserva o apelo, maduro, mas sempre fresco.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Escritos da Maturidade
    
Autor: Lúcia Miguel Pereira
Editora: Graphia/Fundação Biblioteca Nacional
Quanto: R$ 45 (360 págs.)


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