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CARLOS HEITOR CONY
Cena de trem com moça e jovem de batina
De todas as comparações sobre o
amor, feitas ao longo de 8.000
anos, a mais próxima da essência
do sentimento que, segundo Dante "move o Sol e as outras estrelas", é a de dois trens parados na
mesma estação, mas com destinos
diferentes.
Eu em muito criança, nem sabia
o que podia ser o amor, li uma pequenina novela de Turgueniev
que caíra da estante de livros de
meu pai. A capa era atraente: o
rosto de uma jovem na janela de
um trem. Naquela época, eu era
louco por trens, queria ser maquinista da Central do Brasil. Fiquei
olhando aquela capa, não por
causa da moça, mas por causa do
trem.
Até que li a novela. Para a minha idade, não era grande coisa.
Contudo, uma cena ficou marcada dentro de mim, foi talvez a
única que entendi realmente -e
ela atravessou comigo esses anos
todos, nunca a esqueci. Pior: muitas vezes a revivi em causa própria. É talvez a situação mais recorrente de uma vida que pode
merecer tudo, menos a classificação de novela.
Turgueniev conta a história de
dois jovens que se enamoram. Um
deles é casado. Por isso ou aquilo
se separam, nunca mais se vêem.
Passa o tempo e, um dia, o jovem
está num trem que pára numa estação. Na plataforma ao lado, há
outro trem parado. Após alguns
minutos, os dois trens começam a
andar, lentamente, em sentido
contrário.
De repente, o jovem vê, na janela do outro trem, a jovem que
amou e que também olha para
ele. São breves, fugazes, os poucos
segundos em que se olham, sem
surpresa, sem dor. Ele não sabe
para onde vai o trem dela. A recíproca é verdadeira: ela também
não sabe para onde o jovem vai.
Somente uma coisa é certa: eles se
olharam e se compreenderam.
Eles se amaram e se amarão sempre. Não importa o destino de cada um. O amor se realiza naquela
troca de olhares, que poderá ser a
última, nem por isso deixa de ser a
mais amargamente doce.
Tudo que poderia ter sido e não
é -eis também uma definição do
amor. Ele se realiza de maneira
integral nesses instantes fugidios
em que as palavras não têm tempo de serem ditas, nem precisam.
E que tudo se resume numa conspiração de dois seres que se olham
e subitamente se entregam um ao
outro de forma imaterial e breve
-mas para sempre.
Como disse, eu era criança
quando li a novela de Turgueniev,
que se chama "Ássia" -nome da
principal personagem. Eu não
amara ninguém, até então. Afinal, estava indo para um seminário, já superara a idéia de ser maquinista da Central e queria ser
sacerdote de Deus.
Viver aquela situação seria impossível. Em matéria de amor, eu
não teria futuro nem passado
-como os dois jovens da novela
de Turgueniev, que ao menos tiveram um passado.
Contudo, ali pela altura dos 18
anos, fui passar férias em Rodeio,
um cidadezinha à beira da estrada de ferro. Todas as manhãs ia à
missa no alto de um pequeno
morro, tomava café com o vigário.
Ele me pedia que descesse à estação para apanhar os jornais que
vinham do Rio.
Naquela manhã, quando cheguei à estação, havia um trem parado, esperando que o sinal de
acesso ao túnel 12 fosse aberto.
Apanhei os jornais e caminhei pela plataforma vazia. Chamava a
atenção dos passageiros, que
olhavam aquele rapaz de 18 anos,
vestido de batina, a faixa de seda
azul na cintura, o passo firme e
satisfeito de quem sabia o que desejava na vida.
Súbito, numa janela do trem, lá
estava a moça que me olhava. Devia ter a minha idade, ou menos.
Uma tabuleta do lado de fora do
vagão indicava que ela estava indo para Juiz de Fora.
Até hoje, tenho a certeza de que
ela olhara antes. Talvez nunca tivesse visto um jovem, da idade dela, de batina. Ainda mais de repente, na plataforma de uma estação perdida na Serra do Mar.
Quando senti que ela me olhava,
parei de caminhar e enfrentei o
seu olhar. De início, parecia apenas espantada ao ver surgir um
rapaz, jovem como ela, isolado do
mundo pela batina, pela faixa de
seda azul que era um estigma da
castidade em que vivia.
Quando notou que eu também
a olhava, teve pena de mim. Pelo
menos foi isso que percebi. Olhei-a
mais fundamente e ela compreendeu. Foi uma eternidade estraçalhada em segundos: o trem começou a andar e ela foi se afastando.
Afastou-se tanto que nunca mais
voltou.
Eu voltei. Segui destino diferente, levei os jornais para o vigário,
fiquei ainda dois anos com aquela
batina, aquela faixa de seda azul,
símbolo de uma castidade que eu
não mais amava.
Tomei muitos, infinitos trens
pela vida afora, trens, aviões, navios. Volta e meia, continuo vendo por aí um rosto que se detém
na minha retina, trazendo-me
aquela cena, metade vivida na
novela de Turgueniev, metade vivida na plataforma vazia de uma
estação, por um jovem que não se
julgava com direito ao futuro e à
memória.
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