São Paulo, sexta-feira, 23 de agosto de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Um bom festival em busca de um bom cinema

Encerrado semana passada, o 30º Festival de Cinema de Gramado deu uma prova de vitalidade, embora a qualidade dos filmes possa ser discutida. São 30 anos de mostra cinematográfica, que abrangem períodos bons e maus. Nos tempos mais duros, quando o governo Collor quase acabou com a produção nacional, o festival teve de apelar para o cinema internacional, buscando competidores na América Latina.
Um quebra-galho que, passada a crise de produção, não mais se justifica. Ou o festival absorve o cinema da América Latina e torna-se um festival latino-americano de cinema, ou retorna à sua concepção original, de festival apenas brasileiro.
Apesar disso, a mostra de 2002 não foi de jogar fora. O melhor filme, disparado, foi "La Perdición de los Hombres", de Arturo Ripstein, uma co-produção mexicana e espanhola em preto-e-branco. Em ambiente rural, um homem tem duas mulheres e uma paixão pelo beisebol. Joga mal, dois colegas de time resolvem matá-lo, fazem uma emboscada e o trucidam a pedradas. Não odeiam a vítima. Apenas a castigam. O corpo do infeliz é disputado pelas duas mulheres numa sequência de humor negro raras vezes vista no cinema.
A história não é contada linearmente -começa com o assassinato, sem nenhuma explicação prévia. Do meio para o fim do filme é que se compreende a infantilidade, a falta de motivo para o crime. Invertendo a cronologia, Ripstein não chega a se utilizar do flashback tradicional. Praticamente divide o filme em duas partes iguais, em dois filmes diferentes, exibindo-os fora de ordem.
No setor nacional, o filme premiado foi "Durval Discos", de Anna Muylaert, creio que uma estreante em longa-metragem. Não é perfeito nem em forma nem em conteúdo, mas tem um encanto proveniente do absurdo da história, que é vendida como normal, um delírio bem-comportado de uma velha dona-de-casa tipicamente paulista, que cria um universo à parte dentro de uma loja decadente que vende discos velhos.
O júri deu um prêmio especial a "Uma Onda no Ar", de Helvécio Ratton, o filme com mais defeitos de todo o festival, mas que mereceu a distinção pelo seu tema: um grupo de favelados, em Belo Horizonte, bota no ar uma rádio pirata. Por prejudicar as estações legais e até mesmo o tráfego aéreo, o improvisado estúdio é depredado pela polícia, que prende o responsável pela emissora. Como o rum creosotado que salvou o ilustre passageiro que a gente tinha ao lado, as Nações Unidas salvam a rádio clandestina dando-lhe um prêmio internacional.
O filme se perde numa demagogia barata -há discursos primários sobre racismo, torna-se irritante em sua mensagem politicamente correta-, mas aborda uma temática social de forma inédita. Não são as madames do asfalto nem as comunidades solidárias que resolvem o problema da miséria urbana. São os próprios miseráveis que, lembrando a temática de Brecht, autor do qual nunca ouviram falar, lutam pela própria dignidade.
O clã do Barretão exibiu, fora de competição, a última produção da família, "A Paixão de Jacobina", de Fábio Barreto. Recebeu uma ovação monstro da platéia. Apesar de fora da competição, provocou o maior engarrafamento do festival. Foi necessário chamar a polícia para disciplinar a multidão que desejava participar da festa dos Barretos.
Mas houve também outros filmes, nenhum deles de jogar no lixo, mas também nenhum deles de qualidade incontestável. Domingos de Oliveira filmou cuidadosamente sua peça de sucesso, "Separações", de forma limpa, correta, com as obsessões do autor já vistas em outros filmes, sendo que, neste, a influência de Woody Allen chega a ser cansativa.
Bom também, o "Querido Estranho", de Ricardo Pinto e Silva, uma lavação de roupa suja de uma família de classe média, bem ao estilo de Monicelli, com Daniel Filho mostrando que é um ator de nível internacional, senhor de todos os macetes da cena.
"Dois Perdidos Numa Noite Suja", de José Joffily, também não deve ser desprezado. Pecou pela liberdade excessiva com que tratou a peça de Plínio Marcos. Optando por transformar um dos perdidos em perdida e dando um papel dificílimo a Débora Falabella, Joffily é um diretor cuidadoso, que procura dar dignidade a cada cena. Seu filme tem boa fotografia e bom ritmo, mas resulta falso, sem ser exatamente uma metáfora e, muito menos, um apólogo.
Fazendo um resumo do que vi, apenas na mostra dos longas, acho que o cinema nacional melhorou de nível técnico. A iluminação é boa, em alguns casos perfeita, as interpretações são corretas, os roteiros bem elaborados.
O som ainda é problemático. Não é mais a calamidade que infelicitou durante décadas o nosso cinema. Em alguns momentos, chega a ser satisfatório. Mas ainda se perdem algumas falas dos personagens. Uma edição de som, no estrangeiro, custa mais do que o filme inteiro. Esse é um desafio tecnológico que o nosso cinema mais cedo ou mais tarde terá de superar.


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