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CARLOS HEITOR CONY
Um bom festival em busca de um bom cinema
Encerrado semana passada, o 30º Festival de Cinema
de Gramado deu uma prova de
vitalidade, embora a qualidade
dos filmes possa ser discutida. São
30 anos de mostra cinematográfica, que abrangem períodos bons e
maus. Nos tempos mais duros,
quando o governo Collor quase
acabou com a produção nacional,
o festival teve de apelar para o cinema internacional, buscando
competidores na América Latina.
Um quebra-galho que, passada
a crise de produção, não mais se
justifica. Ou o festival absorve o
cinema da América Latina e torna-se um festival latino-americano de cinema, ou retorna à sua
concepção original, de festival
apenas brasileiro.
Apesar disso, a mostra de 2002
não foi de jogar fora. O melhor filme, disparado, foi "La Perdición
de los Hombres", de Arturo Ripstein, uma co-produção mexicana
e espanhola em preto-e-branco.
Em ambiente rural, um homem
tem duas mulheres e uma paixão
pelo beisebol. Joga mal, dois colegas de time resolvem matá-lo, fazem uma emboscada e o trucidam a pedradas. Não odeiam a
vítima. Apenas a castigam. O corpo do infeliz é disputado pelas
duas mulheres numa sequência
de humor negro raras vezes vista
no cinema.
A história não é contada linearmente -começa com o assassinato, sem nenhuma explicação
prévia. Do meio para o fim do filme é que se compreende a infantilidade, a falta de motivo para o
crime. Invertendo a cronologia,
Ripstein não chega a se utilizar do
flashback tradicional. Praticamente divide o filme em duas partes iguais, em dois filmes diferentes, exibindo-os fora de ordem.
No setor nacional, o filme premiado foi "Durval Discos", de
Anna Muylaert, creio que uma
estreante em longa-metragem.
Não é perfeito nem em forma
nem em conteúdo, mas tem um
encanto proveniente do absurdo
da história, que é vendida como
normal, um delírio bem-comportado de uma velha dona-de-casa
tipicamente paulista, que cria um
universo à parte dentro de uma
loja decadente que vende discos
velhos.
O júri deu um prêmio especial a
"Uma Onda no Ar", de Helvécio
Ratton, o filme com mais defeitos
de todo o festival, mas que mereceu a distinção pelo seu tema: um
grupo de favelados, em Belo Horizonte, bota no ar uma rádio pirata. Por prejudicar as estações legais e até mesmo o tráfego aéreo,
o improvisado estúdio é depredado pela polícia, que prende o responsável pela emissora. Como o
rum creosotado que salvou o ilustre passageiro que a gente tinha
ao lado, as Nações Unidas salvam
a rádio clandestina dando-lhe
um prêmio internacional.
O filme se perde numa demagogia barata -há discursos primários sobre racismo, torna-se irritante em sua mensagem politicamente correta-, mas aborda
uma temática social de forma
inédita. Não são as madames do
asfalto nem as comunidades solidárias que resolvem o problema
da miséria urbana. São os próprios miseráveis que, lembrando
a temática de Brecht, autor do
qual nunca ouviram falar, lutam
pela própria dignidade.
O clã do Barretão exibiu, fora
de competição, a última produção da família, "A Paixão de Jacobina", de Fábio Barreto. Recebeu uma ovação monstro da platéia. Apesar de fora da competição, provocou o maior engarrafamento do festival. Foi necessário
chamar a polícia para disciplinar
a multidão que desejava participar da festa dos Barretos.
Mas houve também outros filmes, nenhum deles de jogar no lixo, mas também nenhum deles de
qualidade incontestável. Domingos de Oliveira filmou cuidadosamente sua peça de sucesso, "Separações", de forma limpa, correta,
com as obsessões do autor já vistas em outros filmes, sendo que,
neste, a influência de Woody
Allen chega a ser cansativa.
Bom também, o "Querido Estranho", de Ricardo Pinto e Silva,
uma lavação de roupa suja de
uma família de classe média, bem
ao estilo de Monicelli, com Daniel
Filho mostrando que é um ator de
nível internacional, senhor de todos os macetes da cena.
"Dois Perdidos Numa Noite Suja", de José Joffily, também não
deve ser desprezado. Pecou pela
liberdade excessiva com que tratou a peça de Plínio Marcos. Optando por transformar um dos
perdidos em perdida e dando um
papel dificílimo a Débora Falabella, Joffily é um diretor cuidadoso,
que procura dar dignidade a cada cena. Seu filme tem boa fotografia e bom ritmo, mas resulta
falso, sem ser exatamente uma
metáfora e, muito menos, um
apólogo.
Fazendo um resumo do que vi,
apenas na mostra dos longas,
acho que o cinema nacional melhorou de nível técnico. A iluminação é boa, em alguns casos perfeita, as interpretações são corretas, os roteiros bem elaborados.
O som ainda é problemático.
Não é mais a calamidade que infelicitou durante décadas o nosso
cinema. Em alguns momentos,
chega a ser satisfatório. Mas ainda se perdem algumas falas dos
personagens. Uma edição de som,
no estrangeiro, custa mais do que
o filme inteiro. Esse é um desafio
tecnológico que o nosso cinema
mais cedo ou mais tarde terá de
superar.
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