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ALÉM DA IMAGINAÇÃO
"Páginas de Sombra" mostra que gênero está na literatura brasileira pelo menos desde o século 19
"Constelação" desenha fantástico nacional
ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REPORTAGEM LOCAL
Sem perseguir uma ordenação
rigorosa que desse conta das diversas vertentes da literatura fantástica, o escritor Braulio Tavares,
52, optou por fazer na antologia
"Páginas de Sombra" um apanhado pessoal de textos nacionais
que, de uma forma ou de outra,
enfrentam os limites da realidade.
"Acho meio pretensioso querer
definir o fantástico. Para mim, o
mais importante é dar ao leitor
um cardápio variado. Proponho
que ele marque os pontos afastados uns dos outros como se eu estivesse propondo uma constelação e dizendo: "Escolha qual estrela você vai ligar com um traço ou
não'", diz o paraibano de sua casa
no Rio, onde mora há 20 anos.
Entre as 16 opções, o organizador apresenta Machado de Assis,
Carlos Drummond de Andrade,
Rubens Figueiredo e outros menos conhecidos, como Adelpho
Monjardim e Amândio Sobral.
Nesse universo de autores, no
entanto, o terreno literário é extrapolado. Para explicar a qual linhagem fantástica os selecionados pertencem, Tavares recorre a
comparações com outras mídias,
como o cinema e os quadrinhos.
"Concentro-me na arte narrativa que está presente nas diversas
formas de expressão e que tem
suas regras próprias. No caso do
fantástico, que é baseado numa
idéia forte que sacode o leitor, ele
transcende as divisões entre quadrinhos, teatro, cinema etc.", diz
Tavares.
Por isso, quando escreve sobre o
texto "Máquina de Ler Pensamentos", de Lília Aparecida Pereira da Silva, por exemplo, compara: "O conto seguinte compartilha com vários outros um cenário de "ciência gótica" -a ciência
que aparece nos filmes de terror
da Hammer Films inglesa ou do
americano Roger Corman, a ciência dos "pulp magazines" mais popularescos".
"Meu interesse é mostrar o fantástico para o leitor que nunca leu
o fantástico. Um dos objetivos é
apresentar diferentes situações e
maneiras de explorar temas que
existem apenas no Brasil", diz.
Por mais que as narrativas demonstrem uma forma nacional, o
fato é que os monstros e as assombrações que nascem e se reproduzem nas histórias ao pé da fogueira do interior do Brasil não ajudaram na confecção do livro.
Essa falta dos elementos do
imaginário particularmente brasileiro já havia sido identificada
por Jerônimo Monteiro, em 1959,
quando publicou a coletânea "O
Conto Fantástico" pela editora Civilização Brasileira, uma das fontes principais de inspiração para
Tavares. Monteiro escreveu no
prefácio: "Quando surgiu a idéia
da antologia, a impressão era de
haver fartura de material, pois
que se trata de gênero muito do
agrado do povo. (...) [Mas] Há
muitas lendas, superstições e assombrações por esse sertão, e há
pouco quem se aproveite do tema
para escrever".
Não se trata, portanto, da falta
de fantástico nacional, mas da falta da sua transposição da original
cultura oral para o registro escrito. Isso não impediu, todavia, que
o gênero ocupasse seu lugar nas
páginas impressas desde o final
do século 19. Naquela época, autores como Aluísio Azevedo e
Machado de Assis já se arriscavam nos limites da realidade, na
maioria das vezes influenciados
por narrativas de estrangeiros como Edgar Allan Poe (1809-1849).
Durante a década de 1920 do
modernismo, algumas lendas tipicamente nacionais penetraram
na literatura algo fantástica do
"Macunaíma", de Mário de Andrade, por exemplo. Mas então
era um país se formando, procurando encontrar sua identidade
através de construções míticas.
Na verdade, aos textos com ares
internacionais de conhecidos ou
desconhecidos escritores, sempre
faltou a classificação que os enquadrasse sob o rótulo "fantástico" -acompanhando ou não a
clássica definição do linguista
francês de origem búlgara Tzvetan Todorov, que entende o gênero como aquele frente ao qual o
leitor hesita quanto à veracidade
ou não de um acontecimento aparentemente sobrenatural.
Essa restrição ao uso do termo
"fantástico" pode estar relacionada ao estigma que o rótulo "realismo mágico" propagou nos anos
60, quando denominava uma literatura que nascia específica em
reação aos regimes ditatoriais da
América Latina, ou ainda à prevalência da necessidade atual do real
para se enxergar o país.
"Ainda estamos tentando domesticar o realismo, e cultivar o
fantástico não é prioridade. Nossa
literatura, vista em conjunto, pretende enxergar o Brasil, imaginar
o Brasil. Não creio que o realismo
seja a única estratégia narrativa
capaz de se desincumbir dessa tarefa, mas reconheço que a literatura fantástica dá a muitas pessoas a sensação de nos afastar do
mundo", escreveu Tavares em
"Páginas de Sombra".
De outro lado, mais prático, está
o problema editorial de uma literatura que muitas vezes não se desenvolve estilisticamente, resumindo-se à apresentação de "uma
idéia forte". "Falta no Brasil, do
ponto de vista editorial, uma literatura de entretenimento de boa
qualidade. O escritor que faz qualquer coisa sabe que será lido por
uma elite exigente e então será
comparado a Machado, Rosa, fulano e sicrano", afirma Tavares,
autor de "A Espinha Dorsal da
Memória" (1989).
Mas esse já é um problema que
ultrapassa a literatura fantástica.
PÁGINAS DE SOMBRA - CONTOS FANTÁSTICOS BRASILEIROS. Seleção e apresentação: Braulio Tavares. Editora:
Casa da Palavra. Quanto: R$ 28 (168 págs.).
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