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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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ALÉM DA IMAGINAÇÃO

"Páginas de Sombra" mostra que gênero está na literatura brasileira pelo menos desde o século 19

"Constelação" desenha fantástico nacional

ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Sem perseguir uma ordenação rigorosa que desse conta das diversas vertentes da literatura fantástica, o escritor Braulio Tavares, 52, optou por fazer na antologia "Páginas de Sombra" um apanhado pessoal de textos nacionais que, de uma forma ou de outra, enfrentam os limites da realidade.
"Acho meio pretensioso querer definir o fantástico. Para mim, o mais importante é dar ao leitor um cardápio variado. Proponho que ele marque os pontos afastados uns dos outros como se eu estivesse propondo uma constelação e dizendo: "Escolha qual estrela você vai ligar com um traço ou não'", diz o paraibano de sua casa no Rio, onde mora há 20 anos.
Entre as 16 opções, o organizador apresenta Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Rubens Figueiredo e outros menos conhecidos, como Adelpho Monjardim e Amândio Sobral.
Nesse universo de autores, no entanto, o terreno literário é extrapolado. Para explicar a qual linhagem fantástica os selecionados pertencem, Tavares recorre a comparações com outras mídias, como o cinema e os quadrinhos.
"Concentro-me na arte narrativa que está presente nas diversas formas de expressão e que tem suas regras próprias. No caso do fantástico, que é baseado numa idéia forte que sacode o leitor, ele transcende as divisões entre quadrinhos, teatro, cinema etc.", diz Tavares.
Por isso, quando escreve sobre o texto "Máquina de Ler Pensamentos", de Lília Aparecida Pereira da Silva, por exemplo, compara: "O conto seguinte compartilha com vários outros um cenário de "ciência gótica" -a ciência que aparece nos filmes de terror da Hammer Films inglesa ou do americano Roger Corman, a ciência dos "pulp magazines" mais popularescos".
"Meu interesse é mostrar o fantástico para o leitor que nunca leu o fantástico. Um dos objetivos é apresentar diferentes situações e maneiras de explorar temas que existem apenas no Brasil", diz.
Por mais que as narrativas demonstrem uma forma nacional, o fato é que os monstros e as assombrações que nascem e se reproduzem nas histórias ao pé da fogueira do interior do Brasil não ajudaram na confecção do livro.
Essa falta dos elementos do imaginário particularmente brasileiro já havia sido identificada por Jerônimo Monteiro, em 1959, quando publicou a coletânea "O Conto Fantástico" pela editora Civilização Brasileira, uma das fontes principais de inspiração para Tavares. Monteiro escreveu no prefácio: "Quando surgiu a idéia da antologia, a impressão era de haver fartura de material, pois que se trata de gênero muito do agrado do povo. (...) [Mas] Há muitas lendas, superstições e assombrações por esse sertão, e há pouco quem se aproveite do tema para escrever".
Não se trata, portanto, da falta de fantástico nacional, mas da falta da sua transposição da original cultura oral para o registro escrito. Isso não impediu, todavia, que o gênero ocupasse seu lugar nas páginas impressas desde o final do século 19. Naquela época, autores como Aluísio Azevedo e Machado de Assis já se arriscavam nos limites da realidade, na maioria das vezes influenciados por narrativas de estrangeiros como Edgar Allan Poe (1809-1849).
Durante a década de 1920 do modernismo, algumas lendas tipicamente nacionais penetraram na literatura algo fantástica do "Macunaíma", de Mário de Andrade, por exemplo. Mas então era um país se formando, procurando encontrar sua identidade através de construções míticas.
Na verdade, aos textos com ares internacionais de conhecidos ou desconhecidos escritores, sempre faltou a classificação que os enquadrasse sob o rótulo "fantástico" -acompanhando ou não a clássica definição do linguista francês de origem búlgara Tzvetan Todorov, que entende o gênero como aquele frente ao qual o leitor hesita quanto à veracidade ou não de um acontecimento aparentemente sobrenatural.
Essa restrição ao uso do termo "fantástico" pode estar relacionada ao estigma que o rótulo "realismo mágico" propagou nos anos 60, quando denominava uma literatura que nascia específica em reação aos regimes ditatoriais da América Latina, ou ainda à prevalência da necessidade atual do real para se enxergar o país.
"Ainda estamos tentando domesticar o realismo, e cultivar o fantástico não é prioridade. Nossa literatura, vista em conjunto, pretende enxergar o Brasil, imaginar o Brasil. Não creio que o realismo seja a única estratégia narrativa capaz de se desincumbir dessa tarefa, mas reconheço que a literatura fantástica dá a muitas pessoas a sensação de nos afastar do mundo", escreveu Tavares em "Páginas de Sombra".
De outro lado, mais prático, está o problema editorial de uma literatura que muitas vezes não se desenvolve estilisticamente, resumindo-se à apresentação de "uma idéia forte". "Falta no Brasil, do ponto de vista editorial, uma literatura de entretenimento de boa qualidade. O escritor que faz qualquer coisa sabe que será lido por uma elite exigente e então será comparado a Machado, Rosa, fulano e sicrano", afirma Tavares, autor de "A Espinha Dorsal da Memória" (1989).
Mas esse já é um problema que ultrapassa a literatura fantástica.


PÁGINAS DE SOMBRA - CONTOS FANTÁSTICOS BRASILEIROS. Seleção e apresentação: Braulio Tavares. Editora: Casa da Palavra. Quanto: R$ 28 (168 págs.).


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