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RODAPÉ
"Silêncio primordial" expressa caráter irredutível da experiência
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em "Seis Propostas para o Próximo Milênio", Italo Calvino
elegeu alguns valores estéticos
que gostaria de ver preservados
na literatura do futuro: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. Passados quase 20 anos (o livro de Calvino é de 1985), é difícil negar que
eles serviram de bússola para boa
parte da literatura do século 20 e
deste início de milênio. Entretanto talvez fosse o caso de acrescentar à lista um outro item: o "silêncio", tema de um belo livro de ensaios de Santiago Kovadloff.
Não se trata de um volume de
crítica literária ou estética, mas de
um livro em que poesia e pintura
entram ao lado da psicanálise, da
música, da matemática, da experiência mística e do discurso amoroso para definir aquilo que está
no título da antologia: "O Silêncio
Primordial".
Como o ensaísta argentino declara logo no prefácio, não lhe interessa o "semblante explicável"
do silêncio, ou seja, o silêncio como ocultamento, mentira e dissimulação. Aquilo que Kovadloff
investiga é o silêncio como "fundo irredutível" da experiência humana, como reencontro com o
inexprimível, tensa conciliação
com a insuficiência das palavras
diante das coisas e com o caráter
parcial da vivência contrastada
com o horizonte do possível. O
"silêncio primordial" de Kovadloff é menos o gesto pelo qual toda comunicação cessa do que
uma metáfora daquilo que deixou
de ser dito -porque não poderia
ser dito.
Existe um risco intrínseco a essa
empreitada. Afinal, como nomear
algo que designa o inominável?
Mas é justamente o reconhecimento desse impasse, dessa aporia, que confere complexidade e
beleza à escrita de Kovadloff. Ele
vai esculpindo o silêncio, definindo-o negativamente por aquilo
que não é.
No caso da experiência religiosa, Kovadloff situa o "silêncio primordial" na esfera do isolamento
monástico, que "transfigura o homem que presume saber tudo em
homem que se sabe diante da imponderabilidade do Todo". No
âmbito da matemática, ele se presentifica no algarismo zero, locução que "realiza o inexequível" e
que representa a "indeterminação
absoluta". Na psicanálise, é aquilo
que "impede que o homem se sinta totalizado", "ante-sala do significado ausente".
Esses emblemas rascunhados
pela prosa densa de Kovadloff
mostram como é difícil dar conta
de algo que resiste à representação, que se define como uma
"imagem sem forma". Por isso,
talvez o melhor ensaio do livro seja justamente aquele em que discute o silêncio poético.
Afinal, é na poesia que o silêncio
se faz palavra. Ou melhor, anunciação epifânica, deslocamento
que quebra a "ilusão do acoplamento final entre palavra e mundo"; a poesia visitada pelo silêncio
revela ao mesmo tempo a "repulsa humana ao estático" (por meio
de uma linguagem que se desembaraça das determinações e ruídos do idioma corrente) e "denúncia ofuscante de sua mais íntima vulnerabilidade" (reconhecimento, por meio da criação poética, de que aquilo que desencadeia
a linguagem sempre nos escapa).
Infelizmente, Kovadloff faz
poucas referências a autores que
expressam esse silêncio primordial. Não há nenhuma menção à
filosofia de Wittgenstein ("Sobre
aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar"), à poética de Valéry ("Um bom poema é silencioso"), à música de Webern (cuja
notas parecem molduras para o
silêncio) aos grafismos de Cy
Twombly ou às telas perfuradas
de Lucio Fontana (em que o plano
pictórico se constitui como falta).
Fica para o leitor, portanto, a difícil tarefa de encontrar palavras,
sons e imagens em que "vibre o
eco de uma presença sem rosto".
O Silêncio Primordial
Autor: Santiago Kovadloff
Tradutores: Eric Nepomuceno e Luís
Carlos Cabral
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 32 (192 págs.)
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