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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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RODAPÉ

"Silêncio primordial" expressa caráter irredutível da experiência

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em "Seis Propostas para o Próximo Milênio", Italo Calvino elegeu alguns valores estéticos que gostaria de ver preservados na literatura do futuro: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. Passados quase 20 anos (o livro de Calvino é de 1985), é difícil negar que eles serviram de bússola para boa parte da literatura do século 20 e deste início de milênio. Entretanto talvez fosse o caso de acrescentar à lista um outro item: o "silêncio", tema de um belo livro de ensaios de Santiago Kovadloff.
Não se trata de um volume de crítica literária ou estética, mas de um livro em que poesia e pintura entram ao lado da psicanálise, da música, da matemática, da experiência mística e do discurso amoroso para definir aquilo que está no título da antologia: "O Silêncio Primordial".
Como o ensaísta argentino declara logo no prefácio, não lhe interessa o "semblante explicável" do silêncio, ou seja, o silêncio como ocultamento, mentira e dissimulação. Aquilo que Kovadloff investiga é o silêncio como "fundo irredutível" da experiência humana, como reencontro com o inexprimível, tensa conciliação com a insuficiência das palavras diante das coisas e com o caráter parcial da vivência contrastada com o horizonte do possível. O "silêncio primordial" de Kovadloff é menos o gesto pelo qual toda comunicação cessa do que uma metáfora daquilo que deixou de ser dito -porque não poderia ser dito.
Existe um risco intrínseco a essa empreitada. Afinal, como nomear algo que designa o inominável? Mas é justamente o reconhecimento desse impasse, dessa aporia, que confere complexidade e beleza à escrita de Kovadloff. Ele vai esculpindo o silêncio, definindo-o negativamente por aquilo que não é.
No caso da experiência religiosa, Kovadloff situa o "silêncio primordial" na esfera do isolamento monástico, que "transfigura o homem que presume saber tudo em homem que se sabe diante da imponderabilidade do Todo". No âmbito da matemática, ele se presentifica no algarismo zero, locução que "realiza o inexequível" e que representa a "indeterminação absoluta". Na psicanálise, é aquilo que "impede que o homem se sinta totalizado", "ante-sala do significado ausente".
Esses emblemas rascunhados pela prosa densa de Kovadloff mostram como é difícil dar conta de algo que resiste à representação, que se define como uma "imagem sem forma". Por isso, talvez o melhor ensaio do livro seja justamente aquele em que discute o silêncio poético.
Afinal, é na poesia que o silêncio se faz palavra. Ou melhor, anunciação epifânica, deslocamento que quebra a "ilusão do acoplamento final entre palavra e mundo"; a poesia visitada pelo silêncio revela ao mesmo tempo a "repulsa humana ao estático" (por meio de uma linguagem que se desembaraça das determinações e ruídos do idioma corrente) e "denúncia ofuscante de sua mais íntima vulnerabilidade" (reconhecimento, por meio da criação poética, de que aquilo que desencadeia a linguagem sempre nos escapa).
Infelizmente, Kovadloff faz poucas referências a autores que expressam esse silêncio primordial. Não há nenhuma menção à filosofia de Wittgenstein ("Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar"), à poética de Valéry ("Um bom poema é silencioso"), à música de Webern (cuja notas parecem molduras para o silêncio) aos grafismos de Cy Twombly ou às telas perfuradas de Lucio Fontana (em que o plano pictórico se constitui como falta). Fica para o leitor, portanto, a difícil tarefa de encontrar palavras, sons e imagens em que "vibre o eco de uma presença sem rosto".


O Silêncio Primordial
    
Autor: Santiago Kovadloff Tradutores: Eric Nepomuceno e Luís Carlos Cabral Editora: José Olympio Quanto: R$ 32 (192 págs.)



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