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Rahimi destrincha repressão afegã
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
"As Mil Casas do Sonho e do
Terror" mergulham o leitor, desde o início, no labirinto mental de
seu personagem principal, Farhad, um estudante que sofre a repressão do poder comunista que
controlava Cabul em 1978, pouco
antes da invasão soviética do Afeganistão.
Seu autor, o escritor e cineasta
afegão Atiq Rahimi, 41, está no
Afeganistão desde o início desta
semana para transformar em filme seu primeiro livro, o aclamado "Terra e Cinzas" (2002). Nas
"mil casas", como em seu primeiro trabalho, Rahimi entra com
maestria nos porões da repressão,
ideológica ou religiosa, e descreve
com riqueza de detalhes seus efeitos sobre o modo de pensar (ou de
sonhar) de seus personagens.
Leia a seguir trechos da entrevista que ele concedeu à Folha de
Paris (onde vive desde a década
de 80), por telefone.
Folha - As "mil casas" significam
labirinto em persa. Por que o sr. escolheu esse artifício como ponto de
partida de seu livro?
Atiq Rahimi - O labirinto, na cultura afegã, não tem um significado negativo obrigatoriamente. É
lógico que faz alusão à escuridão e
à perda de rumo, mas trata-se de
um caminho que deve absolutamente ser seguido, no qual as pessoas acabam se reencontrando.
Na cultura tradicional afegã,
que se inspirou no budismo, o objetivo não é o fim do caminho,
mas o próprio percurso. Foi por
isso, aliás, que escolhi manter as
"mil casas" em outras línguas,
sem traduzir o termo, já que a palavra "labirinto" tem conotação
negativa nas culturas ocidentais.
Folha - Em "Terra e Cinzas", o sr.
escolheu o período da invasão soviética do Afeganistão (1979-89)
como pano de fundo da narrativa.
Desta vez, a história ocorre durante o período do terror pré-soviético. Por quê?
Rahimi - Quando decidi escrever
meu segundo livro, estávamos na
época do Taleban [regime deposto por uma coalizão liderada pelos EUA no final de 2001], no Afeganistão. Eu detectava uma semelhança bastante bizarra entre o
período do terror ideológico,
ocorrido antes da invasão soviética, e o do terror religioso, estabelecido pelo Taleban em meados
da década de 90, e queria compará-los.
Contudo eu queria manter a
unidade temporal de meu livro,
sendo, portanto, obrigado a resumir 24 anos de história afegã em
24 horas de narrativa. Assim, de
início, Farhad é atacado pelos representantes do terror ideológico
e tenta fugir de Cabul. Porém ele
chega a um vilarejo e, em seguida,
cai nas mãos de extremistas religiosos bastante similares aos
membros do Taleban.
Ou seja, ele deixa o terror vermelho e cai no terror negro. No
Afeganistão, a noção de tempo
não é tão forte quanto aqui, o que
faz com que uma viagem no espaço possa significar uma viagem
no tempo. Assim, em meu livro,
descrevo uma viagem no espaço
que tem o significado de uma viagem temporal, passando de uma
ditadura a outra. E Farhad sofre
em 1978 como os jovens sofriam
durante o regime do Taleban.
Folha - Seus personagens tiveram a vida quase destruída por diferentes razões que não dependem
da vontade deles. Trata-se de uma
alusão à realidade afegã atual?
Rahimi - Infelizmente, sim. Há
tantos jovens afegãos que sofrem
por inúmeras razões atualmente.
Quanto às mulheres, embora sua
situação tenha melhorado, elas
ainda estão longe de viver numa
condição razoável. Aliás, tento
mostrar isso em meu livro: o Taleban só fez agravar algo que já existia na sociedade afegã, pressionando as mulheres em diversos
sentidos.
A grande contradição é que as
afegãs são muito fortes interiormente. Embora fossem esmagadas de todos os lados, elas mantinham uma força interior inacreditável e, muitas vezes, eram responsáveis pela educação de seus
filhos, já que os homens estavam
ocupados com a guerra. Ao menos uma parte das mulheres já começa a perceber que elas precisarão ter um novo espaço na sociedade afegã.
AS MIL CASAS DO TERROR E DO SONHO. Autor: Atiq Rahimi. Editora: Estação Liberdade. Tradução: Marina
Appenzeller. Quanto: R$ 27 (180 págs.).
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