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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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Rahimi destrincha repressão afegã

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

"As Mil Casas do Sonho e do Terror" mergulham o leitor, desde o início, no labirinto mental de seu personagem principal, Farhad, um estudante que sofre a repressão do poder comunista que controlava Cabul em 1978, pouco antes da invasão soviética do Afeganistão.
Seu autor, o escritor e cineasta afegão Atiq Rahimi, 41, está no Afeganistão desde o início desta semana para transformar em filme seu primeiro livro, o aclamado "Terra e Cinzas" (2002). Nas "mil casas", como em seu primeiro trabalho, Rahimi entra com maestria nos porões da repressão, ideológica ou religiosa, e descreve com riqueza de detalhes seus efeitos sobre o modo de pensar (ou de sonhar) de seus personagens.
Leia a seguir trechos da entrevista que ele concedeu à Folha de Paris (onde vive desde a década de 80), por telefone.

Folha - As "mil casas" significam labirinto em persa. Por que o sr. escolheu esse artifício como ponto de partida de seu livro?
Atiq Rahimi -
O labirinto, na cultura afegã, não tem um significado negativo obrigatoriamente. É lógico que faz alusão à escuridão e à perda de rumo, mas trata-se de um caminho que deve absolutamente ser seguido, no qual as pessoas acabam se reencontrando.
Na cultura tradicional afegã, que se inspirou no budismo, o objetivo não é o fim do caminho, mas o próprio percurso. Foi por isso, aliás, que escolhi manter as "mil casas" em outras línguas, sem traduzir o termo, já que a palavra "labirinto" tem conotação negativa nas culturas ocidentais.

Folha - Em "Terra e Cinzas", o sr. escolheu o período da invasão soviética do Afeganistão (1979-89) como pano de fundo da narrativa. Desta vez, a história ocorre durante o período do terror pré-soviético. Por quê?
Rahimi -
Quando decidi escrever meu segundo livro, estávamos na época do Taleban [regime deposto por uma coalizão liderada pelos EUA no final de 2001], no Afeganistão. Eu detectava uma semelhança bastante bizarra entre o período do terror ideológico, ocorrido antes da invasão soviética, e o do terror religioso, estabelecido pelo Taleban em meados da década de 90, e queria compará-los.
Contudo eu queria manter a unidade temporal de meu livro, sendo, portanto, obrigado a resumir 24 anos de história afegã em 24 horas de narrativa. Assim, de início, Farhad é atacado pelos representantes do terror ideológico e tenta fugir de Cabul. Porém ele chega a um vilarejo e, em seguida, cai nas mãos de extremistas religiosos bastante similares aos membros do Taleban.
Ou seja, ele deixa o terror vermelho e cai no terror negro. No Afeganistão, a noção de tempo não é tão forte quanto aqui, o que faz com que uma viagem no espaço possa significar uma viagem no tempo. Assim, em meu livro, descrevo uma viagem no espaço que tem o significado de uma viagem temporal, passando de uma ditadura a outra. E Farhad sofre em 1978 como os jovens sofriam durante o regime do Taleban.

Folha - Seus personagens tiveram a vida quase destruída por diferentes razões que não dependem da vontade deles. Trata-se de uma alusão à realidade afegã atual?
Rahimi -
Infelizmente, sim. Há tantos jovens afegãos que sofrem por inúmeras razões atualmente. Quanto às mulheres, embora sua situação tenha melhorado, elas ainda estão longe de viver numa condição razoável. Aliás, tento mostrar isso em meu livro: o Taleban só fez agravar algo que já existia na sociedade afegã, pressionando as mulheres em diversos sentidos.
A grande contradição é que as afegãs são muito fortes interiormente. Embora fossem esmagadas de todos os lados, elas mantinham uma força interior inacreditável e, muitas vezes, eram responsáveis pela educação de seus filhos, já que os homens estavam ocupados com a guerra. Ao menos uma parte das mulheres já começa a perceber que elas precisarão ter um novo espaço na sociedade afegã.


AS MIL CASAS DO TERROR E DO SONHO. Autor: Atiq Rahimi. Editora: Estação Liberdade. Tradução: Marina Appenzeller. Quanto: R$ 27 (180 págs.).


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