|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"PROUST"
Mente brilhante de Beckett foi cativada pelo labor de Proust
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust
(1871-1922), é um dos trabalhos literários mais influentes do século
20. Sob o efeito de sua sintaxe musical, dezenas de autores de relevo
fixaram novos padrões para seu
próprio trabalho.
Entre eles, sem dúvida, Samuel
Beckett (1906-1989), autor de "Esperando Godot", que, por sua vez,
está em qualquer lista das peças
mais poderosas e discutidas nos
últimos cem anos.
A relação espiritual entre Proust
e Beckett, portanto, atrai a atenção de qualquer pessoa interessada no trabalho intelectual contemporâneo -especialmente de
ficção. Por isso a reedição no Brasil de "Proust", ensaio que foi o
primeiro livro publicado por Beckett (em 1931), merece aplausos.
À Cosac & Naify, deve-se a iniciativa de trazer de volta (16 anos
após a edição da L&PM) a excelente tradução que Arthur Nestrovski, articulista da Folha, fez
desse estudo fundamental para
compreender as idéias sobre a interpretação dos sentimentos humanos e das relações entre pessoas no mundo atual.
Em "Proust", redigido quando
o autor tinha 25 anos, Beckett revela como o uso de sistemas formais de pensamento teria poder
decisivo sobre sua maneira de escrever. Fica evidente a admiração
sobre o modo como Proust se valeu dos andaimes da filosofia para
explicar o que é a essência do ser
no homem.
O principal objetivo do romance de Proust e do teatro de Beckett
talvez tenha sido descobrir e mostrar o que constitui a identidade
individual dos humanos. E, apesar de deixar clara a importância
do pensamento intelectual para
levar a cabo essa tarefa (o esteio
proporcionado por Schopenhauer é evidente), Beckett -como Proust e, talvez, inspirado ou
reforçado por ele- conclui que
esse suporte apenas é insuficiente
para o sucesso.
É fora da lógica, do hábito, do
consciente que está a solução do
dilema humano. Só chegamos "à
essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas
aglutinações... quando escapamos para o anexo espaçoso da
alienação mental, durante o sono
ou nas raras folgas de loucura
diurna". A "memória involuntária" é que "restaura não somente
o objeto passado mas também o
Lázaro fascinado ou torturado" e
"revela o que a falsa realidade da
experiência não pôde e jamais poderá revelar -o real".
Mas a memória voluntária e o
mundo externo continuam a existir e a interagir com o indivíduo,
que só se salva dele de modo acidental e fugidio. É desse confronto que emerge a intensidade dramática tanto de Beckett quanto de
Proust. Os personagens dos dois
(e às vezes, parece, eles próprios)
balançam entre a resignação
consciente e a alienação delirante
para responder à convivência forçada desses dois elementos.
Não se deve concluir da leitura
desse exercício de crítica literária
(com o qual pretendia dar início a
uma carreira acadêmica felizmente abandonada em favor da
literatura) que Beckett tenha sido
mero seguidor de Proust. As muitas e marcantes diferenças de estilo e conteúdo entre eles são claras
e as várias confluências se devem
mais a interesses comuns do que a
exageradas influências. Nem por
isso é menos fascinante testemunhar como a mente brilhante de
Beckett se deixou envolver e estimular pelo labor de Proust. Sua
leitura de "Em Busca do Tempo
Perdido" é fundamental para a inteligência coletiva ocidental.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"
Proust
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Arthur Nestrovski
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 24 (104 págs.)
Texto Anterior: Booker Prize ignora as estrelas Próximo Texto: Rahimi destrincha repressão afegã Índice
|