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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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"PROUST"

Mente brilhante de Beckett foi cativada pelo labor de Proust

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust (1871-1922), é um dos trabalhos literários mais influentes do século 20. Sob o efeito de sua sintaxe musical, dezenas de autores de relevo fixaram novos padrões para seu próprio trabalho.
Entre eles, sem dúvida, Samuel Beckett (1906-1989), autor de "Esperando Godot", que, por sua vez, está em qualquer lista das peças mais poderosas e discutidas nos últimos cem anos.
A relação espiritual entre Proust e Beckett, portanto, atrai a atenção de qualquer pessoa interessada no trabalho intelectual contemporâneo -especialmente de ficção. Por isso a reedição no Brasil de "Proust", ensaio que foi o primeiro livro publicado por Beckett (em 1931), merece aplausos.
À Cosac & Naify, deve-se a iniciativa de trazer de volta (16 anos após a edição da L&PM) a excelente tradução que Arthur Nestrovski, articulista da Folha, fez desse estudo fundamental para compreender as idéias sobre a interpretação dos sentimentos humanos e das relações entre pessoas no mundo atual.
Em "Proust", redigido quando o autor tinha 25 anos, Beckett revela como o uso de sistemas formais de pensamento teria poder decisivo sobre sua maneira de escrever. Fica evidente a admiração sobre o modo como Proust se valeu dos andaimes da filosofia para explicar o que é a essência do ser no homem.
O principal objetivo do romance de Proust e do teatro de Beckett talvez tenha sido descobrir e mostrar o que constitui a identidade individual dos humanos. E, apesar de deixar clara a importância do pensamento intelectual para levar a cabo essa tarefa (o esteio proporcionado por Schopenhauer é evidente), Beckett -como Proust e, talvez, inspirado ou reforçado por ele- conclui que esse suporte apenas é insuficiente para o sucesso.
É fora da lógica, do hábito, do consciente que está a solução do dilema humano. Só chegamos "à essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações... quando escapamos para o anexo espaçoso da alienação mental, durante o sono ou nas raras folgas de loucura diurna". A "memória involuntária" é que "restaura não somente o objeto passado mas também o Lázaro fascinado ou torturado" e "revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e jamais poderá revelar -o real".
Mas a memória voluntária e o mundo externo continuam a existir e a interagir com o indivíduo, que só se salva dele de modo acidental e fugidio. É desse confronto que emerge a intensidade dramática tanto de Beckett quanto de Proust. Os personagens dos dois (e às vezes, parece, eles próprios) balançam entre a resignação consciente e a alienação delirante para responder à convivência forçada desses dois elementos.
Não se deve concluir da leitura desse exercício de crítica literária (com o qual pretendia dar início a uma carreira acadêmica felizmente abandonada em favor da literatura) que Beckett tenha sido mero seguidor de Proust. As muitas e marcantes diferenças de estilo e conteúdo entre eles são claras e as várias confluências se devem mais a interesses comuns do que a exageradas influências. Nem por isso é menos fascinante testemunhar como a mente brilhante de Beckett se deixou envolver e estimular pelo labor de Proust. Sua leitura de "Em Busca do Tempo Perdido" é fundamental para a inteligência coletiva ocidental.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"


Proust
    
Autor: Samuel Beckett Tradutor: Arthur Nestrovski Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 24 (104 págs.)



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