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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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DRAUZIO VARELLA

De volta à natalidade

O problema mais grave do país talvez seja o da natalidade entre a população pobre. Tenho consciência plena de que essa afirmação é considerada politicamente incorreta e que me traz problemas com certas alas da intelectualidade todas as vezes que a faço. Mesmo assim, vou insistir nela.
Nove meses de gravações de uma série sobre gravidez, realizadas para a TV em cinco cidades brasileiras, fortaleceram em mim a convicção de que, se não tomarmos providências imediatas, a violência urbana nas próximas décadas nos fará sentir saudades da paz que ainda desfrutamos em lugares como São Paulo e Rio de Janeiro.
Numa época em que dispomos de métodos eficazes de contracepção, o número de gestações indesejadas nas classes mais desfavorecidas é tão exagerado que cabe perguntar: por que razão os responsáveis pela elaboração de políticas públicas fogem desse assunto como o Diabo da cruz?
Além do descaso, só encontro duas explicações para a omissão: ingenuidade ou falta de coragem para contrariar a igreja.
A ingenuidade está na interpretação apressada das estatísticas que mostram queda das taxas médias de natalidade. Realmente, mesmo as mulheres mais pobres têm hoje, em média, menos do que a meia dúzia de filhos de 50 anos atrás. Mas, naquela época, 70% da população vivia em zona rural, onde a criança de sete anos já pegava na enxada para ajudar no sustento da família. Hoje, com 80% dos habitantes nas cidades, três ou quatro filhos pequenos por acaso contribuem para melhorar o orçamento doméstico?
Outra distorção ao analisar taxas médias está em não perceber o que acontece com determinadas subpopulações. Por exemplo, segundo o IBGE, as mulheres com formação universitária têm em média 1,4 filho (como nos países desenvolvidos), enquanto as analfabetas e as que cursaram apenas um ano escolar têm 5,6 (a mesma taxa da Namíbia).
O que mais choca, no entanto, é que não é preciso formação acadêmica para avaliar a gravidade do problema; a realidade está a menos de um palmo de nossos narizes. Quem de nós nunca teve uma empregada doméstica ou não conhece de perto uma mulher com muito mais filhos do que poderia sustentar? Casas sem reboco, mocinhas grávidas e criançada na rua saltam à vista de quem chega à periferia ou entra numa favela de qualquer cidade brasileira.
Não é preciso consultar o IBGE para constatar que existe uma epidemia de gravidez na adolescência no país, basta ir à sala de espera de uma maternidade do SUS. Na favela da Maré, a maior do Rio de Janeiro, elogiei a beleza da menina no colo de uma moça de cabelo cacheado. É minha neta, respondeu. Tinha 31 anos.
Cada bebê assim nascido tira a mãe da escola e empobrece a família dos avós, porque os homens de hoje dificilmente assumem paternidades não desejadas. Quem já pôs os pés numa cadeia sabe o quanto é difícil encontrar um preso que tenha sido criado em companhia de um pai trabalhador; a maioria esmagadora é de filhos de pais desconhecidos, ausentes, mortos em tiroteios ou presidiários como eles.
Os que menos filhos deveriam conceber são justamente os que mais os têm. Por quê? Por sem-vergonhice? Por maldade, só para vê-los sofrer?
Esses bebês indesejados pelos pais vêm ao mundo como consequência da ignorância e da dificuldade de acesso aos métodos de contracepção. Embora no papel o programa brasileiro de planejamento familiar seja considerado dos mais avançados, na prática ele chega capenga à população de baixa renda. As pílulas distribuídas nos postos de saúde são as mais baratas do mercado (e que mais efeitos colaterais provocam); os anticoncepcionais em adesivos a serem trocados apenas uma vez por semana, ideais para vencer a indisciplina das adolescentes como os estudos demonstram, não estão disponíveis; os dispositivos intra-uterinos (DIU) são virtualmente ausentes; e camisinha à vontade, só no Carnaval.
Conseguir vasectomia ou laqueadura de trompas pelo SUS, então, é o verdadeiro parto da montanha. Há que marcar consulta com os médicos, com a assistente social e com a psicóloga. São meses de peregrinação pelos corredores dos hospitais públicos que mães ou pais de cinco filhos são obrigados a fazer, para ouvir perguntas como: e se você se separar de sua mulher e se casar com outra mais jovem? E se seus filhos morrerem e você quiser outros?
Na cartilha que o Ministério da Saúde distribui às gestantes, está garantido acesso à laqueadura a toda mulher com mais de 25 anos que tenha dois ou mais filhos, gratuitamente, pelo SUS. Você sabia, leitora?
De que adianta garantir a existência teórica de um direito, se, na prática, ele é desconhecido por todos? Se o acesso a ele é vedado de forma tão cruel pela burocracia oficial, que até hoje são comuns práticas odiosas como as de políticos trocarem laqueaduras por votos em véspera de eleição, e médicos do SUS cobrarem por fora por esses procedimentos?
Que ideologia insana ou princípio religioso hipócrita justifica o fato de nossas filhas atravessarem a adolescência sem engravidar, enquanto as filhas dos mais pobres dão à luz aos 15 anos? Termos um ou dois filhos, no máximo, enquanto eles têm o dobro ou o triplo para acomodar em habitações precárias?
A falta de recursos para programas abrangentes de planejamento familiar é desculpa irresponsável! Sai muito mais caro abrir escolas, hospitais, postos de saúde, servir merenda, dar remédios e arranjar espaço físico para esse mundo de crianças. E, mais tarde, construir uma cadeia atrás da outra para enjaular os malcomportados.


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