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DRAUZIO VARELLA
De volta à natalidade
O problema mais grave do
país talvez seja o da natalidade entre a população pobre.
Tenho consciência plena de que
essa afirmação é considerada politicamente incorreta e que me
traz problemas com certas alas da
intelectualidade todas as vezes
que a faço. Mesmo assim, vou insistir nela.
Nove meses de gravações de
uma série sobre gravidez, realizadas para a TV em cinco cidades
brasileiras, fortaleceram em mim
a convicção de que, se não tomarmos providências imediatas, a
violência urbana nas próximas
décadas nos fará sentir saudades
da paz que ainda desfrutamos em
lugares como São Paulo e Rio de
Janeiro.
Numa época em que dispomos
de métodos eficazes de contracepção, o número de gestações indesejadas nas classes mais desfavorecidas é tão exagerado que cabe
perguntar: por que razão os responsáveis pela elaboração de políticas públicas fogem desse assunto como o Diabo da cruz?
Além do descaso, só encontro
duas explicações para a omissão:
ingenuidade ou falta de coragem
para contrariar a igreja.
A ingenuidade está na interpretação apressada das estatísticas
que mostram queda das taxas
médias de natalidade. Realmente, mesmo as mulheres mais pobres têm hoje, em média, menos
do que a meia dúzia de filhos de
50 anos atrás. Mas, naquela época, 70% da população vivia em
zona rural, onde a criança de sete
anos já pegava na enxada para
ajudar no sustento da família.
Hoje, com 80% dos habitantes
nas cidades, três ou quatro filhos
pequenos por acaso contribuem
para melhorar o orçamento doméstico?
Outra distorção ao analisar taxas médias está em não perceber
o que acontece com determinadas
subpopulações. Por exemplo, segundo o IBGE, as mulheres com
formação universitária têm em
média 1,4 filho (como nos países
desenvolvidos), enquanto as
analfabetas e as que cursaram
apenas um ano escolar têm 5,6 (a
mesma taxa da Namíbia).
O que mais choca, no entanto, é
que não é preciso formação acadêmica para avaliar a gravidade
do problema; a realidade está a
menos de um palmo de nossos narizes. Quem de nós nunca teve
uma empregada doméstica ou
não conhece de perto uma mulher
com muito mais filhos do que poderia sustentar? Casas sem reboco, mocinhas grávidas e criançada na rua saltam à vista de quem
chega à periferia ou entra numa
favela de qualquer cidade brasileira.
Não é preciso consultar o IBGE
para constatar que existe uma
epidemia de gravidez na adolescência no país, basta ir à sala de
espera de uma maternidade do
SUS. Na favela da Maré, a maior
do Rio de Janeiro, elogiei a beleza
da menina no colo de uma moça
de cabelo cacheado. É minha neta, respondeu. Tinha 31 anos.
Cada bebê assim nascido tira a
mãe da escola e empobrece a família dos avós, porque os homens
de hoje dificilmente assumem paternidades não desejadas. Quem
já pôs os pés numa cadeia sabe o
quanto é difícil encontrar um preso que tenha sido criado em companhia de um pai trabalhador; a
maioria esmagadora é de filhos
de pais desconhecidos, ausentes,
mortos em tiroteios ou presidiários como eles.
Os que menos filhos deveriam
conceber são justamente os que
mais os têm. Por quê? Por sem-vergonhice? Por maldade, só para
vê-los sofrer?
Esses bebês indesejados pelos
pais vêm ao mundo como consequência da ignorância e da dificuldade de acesso aos métodos de
contracepção. Embora no papel o
programa brasileiro de planejamento familiar seja considerado
dos mais avançados, na prática
ele chega capenga à população de
baixa renda. As pílulas distribuídas nos postos de saúde são as
mais baratas do mercado (e que
mais efeitos colaterais provocam);
os anticoncepcionais em adesivos
a serem trocados apenas uma vez
por semana, ideais para vencer a
indisciplina das adolescentes como os estudos demonstram, não
estão disponíveis; os dispositivos
intra-uterinos (DIU) são virtualmente ausentes; e camisinha à
vontade, só no Carnaval.
Conseguir vasectomia ou laqueadura de trompas pelo SUS,
então, é o verdadeiro parto da
montanha. Há que marcar consulta com os médicos, com a assistente social e com a psicóloga. São
meses de peregrinação pelos corredores dos hospitais públicos que
mães ou pais de cinco filhos são
obrigados a fazer, para ouvir perguntas como: e se você se separar
de sua mulher e se casar com outra mais jovem? E se seus filhos
morrerem e você quiser outros?
Na cartilha que o Ministério da
Saúde distribui às gestantes, está
garantido acesso à laqueadura a
toda mulher com mais de 25 anos
que tenha dois ou mais filhos,
gratuitamente, pelo SUS. Você sabia, leitora?
De que adianta garantir a existência teórica de um direito, se,
na prática, ele é desconhecido por
todos? Se o acesso a ele é vedado
de forma tão cruel pela burocracia oficial, que até hoje são comuns práticas odiosas como as de
políticos trocarem laqueaduras
por votos em véspera de eleição, e
médicos do SUS cobrarem por fora por esses procedimentos?
Que ideologia insana ou princípio religioso hipócrita justifica o
fato de nossas filhas atravessarem
a adolescência sem engravidar,
enquanto as filhas dos mais pobres dão à luz aos 15 anos? Termos um ou dois filhos, no máximo, enquanto eles têm o dobro ou
o triplo para acomodar em habitações precárias?
A falta de recursos para programas abrangentes de planejamento familiar é desculpa irresponsável! Sai muito mais caro abrir escolas, hospitais, postos de saúde,
servir merenda, dar remédios e
arranjar espaço físico para esse
mundo de crianças. E, mais tarde,
construir uma cadeia atrás da
outra para enjaular os malcomportados.
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