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MEMÓRIA/HAROLDO DE CAMPOS
Controle, sistema e história
MÁRIO CHAMIE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao explicar a poesia concreta, disse Haroldo de Campos (1929-2003): "O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente organizadora que o vigia em suas partes e
no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades
aberto ao leitor. Nesse sentido, de
obra rigorosa, de problema conscientemente proposto e resolvido
em termos artísticos, de corpo irreversível onde tudo é posto em
função de uma vontade implacável de estrutura, é que podemos
aplicar à meta do poema concreto" (revista "Diálogo", nš 7, pág.
72 e 73, 1957).
As palavras e expressões "consciência organizadora", "controle
de possibilidades", "obra rigorosa", "corpo irreversível" e "vontade implacável" permearam a trajetória do concretismo brasileiro,
desde as suas origens.
A explicação de Haroldo sinaliza a estratégia do ferrolho sistêmico e da vigilância prepotente, adotada pelos concretistas, tanto em
relação às perspectivas históricas
do movimento quanto às suas
pretensões de ordem artística e literária.
Do ponto de vista histórico, o
concretismo, sob o pretexto de
"retomar o diálogo com 22", ignorou o esforço de atualização
permanente dos modernistas e
privilegiou, de modo sectário, a
contemporaneidade de seus formalizantes propósitos estéticos.
Essa contemporaneidade se confundiu com alguns princípios e
pressupostos que transitavam do
dogma à ortodoxia mais convicta.
Os princípios se alimentavam de
algumas certezas, desmentidas
depois, como essas: a) a decretação do fim do ciclo histórico do
verso ; b) a substituição da sintaxe
linear (sujeito, verbo e complemento) da escrita poética pela
inevitabilidade de uma sibilina
sintaxe analógico-visual; c) a conversão da palavra em mera coisa
e, portanto, em "não intérprete de
significados", segundo conhecida
definição, ainda, de Haroldo de
Campos; d) a adoção programática do ideograma (chinês) como
método de composição do poema
que, assim composto, se esgotaria
em pura objetividade neutra.
Já os pressupostos consubstanciaram-se numa noção restritiva e
excludente de vanguarda. O ponto central dessa noção consistiu
em desqualificar a pluralidade do
diálogo e do debate criativos, em
nome de um paideuma (elenco de
autores) que, desde Frobenius,
sempre significou o predomínio
de poucos para a obediência de
muitos.
O corpo geral desses fundamentos, delineados no "Plano Piloto"
(1956), provocou impacto e
ameaçou consolidar, entre nós, a
hegemonia de seu discurso autoritário. O sistema fechado desse
discurso (símile do sistema repressivo de 64) só não se impôs de
modo inapelável, graças ao surgimento da Poesia Práxis, com a
publicação do livro "Lavra Lavra"
(ed. Narceja, 1959). Foi a instauração da Práxis que, pondo em crise
a poesia concreta, preparou o terreno para a pluralidade de alternativas de nossa produção artística posterior. Dessa crise deu testemunho o próprio Haroldo de
Campos, através de seu livro "Servidão de Passagem", nos idos de
60, e, mais recentemente, com um
seu lavrado poema sobre o massacre, em 1996, dos sem-terra em
Eldorado dos Carajás.
A morte (que lamentamos) de
um dos mentores do concretismo
não altera a realidade dos fatos,
até porque a história resiste a
qualquer tentativa de sua manipulação.
Mário Chamie é poeta, ensaísta e autor de "Lavra Lavra" e "Caravana Contrária"
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