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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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MEMÓRIA/HAROLDO DE CAMPOS

Controle, sistema e história

MÁRIO CHAMIE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao explicar a poesia concreta, disse Haroldo de Campos (1929-2003): "O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente organizadora que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades aberto ao leitor. Nesse sentido, de obra rigorosa, de problema conscientemente proposto e resolvido em termos artísticos, de corpo irreversível onde tudo é posto em função de uma vontade implacável de estrutura, é que podemos aplicar à meta do poema concreto" (revista "Diálogo", nš 7, pág. 72 e 73, 1957).
As palavras e expressões "consciência organizadora", "controle de possibilidades", "obra rigorosa", "corpo irreversível" e "vontade implacável" permearam a trajetória do concretismo brasileiro, desde as suas origens.
A explicação de Haroldo sinaliza a estratégia do ferrolho sistêmico e da vigilância prepotente, adotada pelos concretistas, tanto em relação às perspectivas históricas do movimento quanto às suas pretensões de ordem artística e literária.
Do ponto de vista histórico, o concretismo, sob o pretexto de "retomar o diálogo com 22", ignorou o esforço de atualização permanente dos modernistas e privilegiou, de modo sectário, a contemporaneidade de seus formalizantes propósitos estéticos. Essa contemporaneidade se confundiu com alguns princípios e pressupostos que transitavam do dogma à ortodoxia mais convicta. Os princípios se alimentavam de algumas certezas, desmentidas depois, como essas: a) a decretação do fim do ciclo histórico do verso ; b) a substituição da sintaxe linear (sujeito, verbo e complemento) da escrita poética pela inevitabilidade de uma sibilina sintaxe analógico-visual; c) a conversão da palavra em mera coisa e, portanto, em "não intérprete de significados", segundo conhecida definição, ainda, de Haroldo de Campos; d) a adoção programática do ideograma (chinês) como método de composição do poema que, assim composto, se esgotaria em pura objetividade neutra.
Já os pressupostos consubstanciaram-se numa noção restritiva e excludente de vanguarda. O ponto central dessa noção consistiu em desqualificar a pluralidade do diálogo e do debate criativos, em nome de um paideuma (elenco de autores) que, desde Frobenius, sempre significou o predomínio de poucos para a obediência de muitos.
O corpo geral desses fundamentos, delineados no "Plano Piloto" (1956), provocou impacto e ameaçou consolidar, entre nós, a hegemonia de seu discurso autoritário. O sistema fechado desse discurso (símile do sistema repressivo de 64) só não se impôs de modo inapelável, graças ao surgimento da Poesia Práxis, com a publicação do livro "Lavra Lavra" (ed. Narceja, 1959). Foi a instauração da Práxis que, pondo em crise a poesia concreta, preparou o terreno para a pluralidade de alternativas de nossa produção artística posterior. Dessa crise deu testemunho o próprio Haroldo de Campos, através de seu livro "Servidão de Passagem", nos idos de 60, e, mais recentemente, com um seu lavrado poema sobre o massacre, em 1996, dos sem-terra em Eldorado dos Carajás.
A morte (que lamentamos) de um dos mentores do concretismo não altera a realidade dos fatos, até porque a história resiste a qualquer tentativa de sua manipulação.


Mário Chamie é poeta, ensaísta e autor de "Lavra Lavra" e "Caravana Contrária"


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