São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2008 |
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RODAPÉ LITERÁRIO O realismo do corpo
MANUEL DA COSTA PINTO COLUNISTA DA FOLHA "NÃO EXISTE teoria que não seja um fragmento, cuidadosamente preparado, de alguma autobiografia." Raras vezes a frase de Paul Valéry coube tão bem em um livro e seu autor como no caso dos "Ensaios Reunidos", de Samuel Rawet. Trata-se do segundo volume dentro de um notável trabalho de reedição desse escritor esquecido -trabalho que teve início com "Contos e Novelas Reunidos", organizado por André Seffrin em 2004. Nascido na Polônia em 1929, Rawet veio com sete anos para o Brasil, onde se formou em engenharia, trabalhando como calculista de concreto armado na construção de Brasília. Se a trajetória familiar e as origens judaicas lembram Clarice Lispector (que nasceu na Ucrânia e também chegou ao país quando criança), Rawet compartilha com ela uma escrita reflexiva, impregnada pelo estranhamento do mundo. A diferença é que, nele, o sentimento de inadequação e a busca de transcendência pela palavra vêm associadas a um ríspido realismo -não no sentido literário (realismo da representação), mas de uma visão do homem sem qualquer ilusão de ordem religiosa, de uma consciência do caráter orgânico da existência. Se em Clarice temos epifanias, Rawet opera por espasmos somáticos: é o corpo que sofre, que se remexe numa agitação que equivale a um protesto contra si mesmo e seu destino de morte. Nos ensaios aqui reunidos por Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus, essa relação de espelhamento entre vida concreta e pensamento abstrato se explicita. Rawet pode discutir a arte de Hölderlin, Novalis e Kafka, mas é o impacto de tais autores sobre sua sensibilidade a matéria-prima de textos que parecem diários de viagem. E se em ensaios como "Alienação e Realidade" e "Angústia e Conhecimento" suas meditações sobre o "ilimitado" dialogam com Heidegger e Sartre, isso não o impede de incluir referências a uma entrevista de Tônia Carrero e nos lembrar que pensou nisso ou naquilo enquanto comprava cigarros num boteco ou negociava com prostitutas e michês da noite carioca. Homossexualidade e judaísmo são temas recorrentes nesses textos muitas vezes escatológicos, de linguagem chula. Engenheiro exilado "num mundo de assassinos e de técnicos do humano", Rawet procura fugir da "mineralidade", da degenerescência do corpo e das identidades coaguladas (bicha, judeu), mergulhando numa escrita em que confluem reflexão e autobiografia. ENSAIOS REUNIDOS Autor: Samuel Rawet Editora: Civilização Brasileira Quanto: R$ 40 (296 págs.) Avaliação: ótimo
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