São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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"Marido Barra Limpa", filme renegado pelo diretor, é exibido pela primeira vez em cerca de 30 anos

Mostra "Person - Um Cineasta de São Paulo" abre amanhã no CCBB e fica em cartaz até 6 de outubro

A chanchada que Person não quis

Divulgação
Cena de "Marido Barra Limpa", com Machadinho, Golias e Person (à dir.), que dirigiu o filme em 1957 e o renegou dez anos depois


IVAN FINOTTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Diretor oficialmente de apenas quatro longas-metragens e cinco curtas, o cineasta paulista Luiz Sérgio Person (1936-1976) acaba de ter mais um filme adicionado à sua filmografia. Trata-se de "Marido Barra Limpa", um longa que seria a estréia de Person na direção, mas que foi renegado e lançado sob o nome de outro diretor.
Às 17h desta quarta-feira, o espectador terá a oportunidade de assistir, pela primeira vez em cerca de 30 anos, a uma exibição de "Marido Barra Limpa" (será em vídeo, já que a cópia na Cinemateca precisa ser restaurada). É a principal atração da mostra "Person - Um Cineasta de São Paulo", com curadoria de Amir Labaki, que começa amanhã (veja quadro nesta página). "Marido Barra Limpa" terá reexibições nos dois próximos domingos: às 15h, no dia 29/9, e às 17h, no dia 6/10.
A descoberta da existência de "Marido Barra Limpa" foi feita por Labaki, articulista da Folha, há cerca de cinco anos, ao ler antigas entrevistas do cineasta. "Ele falava que "São Paulo S.A." era seu "primeiro longa oficial", mas não dava detalhes", conta Labaki. "Depois acabei descobrindo menções a dois filmes: "Marido Barra Limpa" e "Um Marido Para Três Mulheres"."
A verdade é que ambos eram o mesmo filme. A história começa há 45 anos, em 1957, quando Luiz Sérgio Person, 21, foi contratado por um produtor independente para dirigir a chanchada "Um Marido pra Três Mulheres".
Adaptado de uma comédia teatral, o enredo mostrava um marido pilantra sendo reeducado na marra pela família. O astro seria Ronald Golias, sucesso no rádio e na TV, mas que ainda não havia debutado no cinema.
Person filmou a história e fez o papel de namorado da filha. A fita foi montada e dublada, mas o produtor não teve dinheiro para fazer as cópias e lançar o filme. Assim, "Um Marido..." foi encostado. E logo esquecido.
Corta para 1967. O produtor Renato Grecchi, a exemplo de outros empresários da Boca do Lixo, compra filmes inacabados para lançá-los com pouquíssimo investimento e trabalho.
"Eu estava num depósito de filmes na rua Lavapés. Houve uma inundação e várias fitas estavam molhadas", lembra Grecchi, hoje com 68 anos. "Um funcionário montou um varal e colocou algumas para secar. Era um rapaz inteligente aquele. Foi quando vi essa fita pendurada e me interessei."
Grecchi foi atrás do produtor e comprou o filme pelo que estima serem R$ 100 mil atualmente. O que Grecchi tinha nas mãos não era pouco: um filme com Golias, um astro nacional, e dirigido por Person, um cineasta já respeitadíssimo por sua recente "estréia", com "São Paulo S.A." (1965).
Problema 1: "Um Marido..." tinha apenas 65 minutos. Grecchi, profundo conhecedor das mutretas do cinema nacional nos anos 60, sabia que o filme deveria ter pelo menos 80 minutos. Caso contrário, não se beneficiaria das leis de cotas de exibição de filmes e nem poderia inscrevê-lo para receber os prêmios que o Instituto Nacional do Cinema distribuía.
Foi quando Grecchi procurou Person. Queria que ele dirigisse mais 15 minutos para fechar a obra. Sebastião de Souza, assistente de Person na época, lembra da negociação: "Ele nem quis saber. Disse ao Grecchi para lançar, mas pediu para que seu nome sumisse. O Person estava em outra".
Realmente, Person trabalhava naquele que viria a ser seu segundo clássico, "O Caso dos Irmãos Naves" (1967). Não queria ver seu nome associado a uma comédia de boulevard, dirigida por um rapaz de 21 anos, ainda que o rapaz de 21 anos fosse ele mesmo.
Grecchi solucionou esse segundo problema indo ele mesmo para trás das câmeras. "Filmei umas cenas de São Paulo e criei um início documental. Depois, filmei um show de rock e uma batucada. Chamei o ator principal (Machadinho) e fiz uma cena dele numa boate com a loira Paula Ramos."
Dessa forma, o produtor aproveitou para atualizar um filme cheio de números musicais, mas que havia sido feito numa era pré-rock. Aproveitou para rejuvenescer também o nome da fita, inserindo um "barra limpa" no título.
Só se esqueceu que o ator principal havia envelhecido dez anos. "No filme de Person, o Machadinho está grisalho. Na cena que eu gravei depois, está de cabelos brancos. Mas deu para enganar."
Sem um diretor para assinar a fita, Grecchi acabou colocando o próprio nome e a lançou. "Deu para recuperar o que eu tinha gasto e ainda comprei uma Kombi para usar na minha próxima produção, que traria três histórias dirigidas por Person, Ozualdo Candeias e Zé do Caixão", conta.
O filme viria a se chamar "Trilogia de Terror" (1968). E foi um terror mesmo: no primeiro dia de filmagem, o motorista de Grecchi arrebentou a Kombi novinha num poste. E lá se foi o lucro de "Marido Barra Limpa", a verdadeira estréia de Person na direção.


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