São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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ANÁLISE

Filme antecipa elementos da obra do diretor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Marido Barra Limpa" é o que se pode chamar de um estranho filme. Foi filmado basicamente em 1957, por um Luiz Sérgio Person (1936-1976) incipiente, e dez anos depois concluído pelo produtor Renato Grecchi.
Sua importância na obra de Person é na melhor das hipóteses secundaríssima e a lista de seus méritos é infinitamente menor que a de seus problemas. No entanto por duas ou três razões, vale a pena deslocar-se ao Centro Cultural Banco do Brasil para assisti-lo, no ciclo dedicado a Person. A primeira delas é que "Marido Barra Limpa" é uma raridade. A segunda, é que ali se podem encontrar, em estado larvar, inúmeros elementos presentes na obra futura de Person.
A história gira em torno do dr. Clarimundo, patriarca que dirige sua família com mão-de-ferro, exigindo "honra, moral e dignidade". Amante de ópera às voltas com a ascensão do rock, esse dinossauro ambulante se mostrará, claro, não apenas opressor como hipócrita.
No mais, os personagens têm realidade estritamente cinematográfica. No setor comédia, ri-se pouco. Os diálogos pouco fluentes vêm com frequência em socorro da construção dramática pobre. Os números musicais são enfiados a tapa. Enfim, "Marido" parece, em suas limitações, com inúmeros filmes paulistas da segunda metade dos anos 50.
Olhando-o atentamente, no entanto, o dr. Clarimundo é um digno precursor do industrial arrivista de "São Paulo S.A" (1965). Faltava-lhe a indústria automobilística, o oportunismo do imigrante, a modernização dos costumes que o modesto rock brasileiro apenas esboçava. Ele é um resquício do primado do café.
Também se pode ver, nesse ataque de Person ao falso moralismo, uma prefiguração do formidável libelo contra o autoritarismo que é "O Caso dos Irmãos Naves" (1967), sobre dois irmãos julgados e condenados durante a ditadura Vargas por um assassinato que nem acontecera. Mesmo o lado suavemente libertário presente em "Cassy Jones" (1972), seu último filme, pode ser vislumbrado em "Marido Barra Limpa". Afinal, o que se condena em Clarimundo é a hipocrisia, e não a libertinagem.
Existe outro aspecto interessantíssimo, ainda que fugaz, a notar em "Marido Barra Limpa": Clarimundo vive em uma vetusta mansão. Em dado momento, somos informados de que a moderna piscina onde os jovens vivem dançando fica nos fundos da casa.
Seja qual for a explicação desse curioso amálgama arquitetônico, é admirável como ele consegue estar próximo de um aspecto dos filmes que fariam de Person um dos maiores realizadores brasileiros: a permanência do arcaico numa sociedade que se pretende moderna.


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