São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

Novo romance do escritor explora a vida de Lindbergh e possíveis conseqüências de sua vitória contra Roosevelt

Philip Roth imagina EUA pró-nazismo

MIKICHO KAKUTANI
DO "NEW YORK TIMES"

Ao longo de sua carreira, Philip Roth sempre imaginou destinos alternativos para personagens que se assemelham muito a ele próprio: garotos inteligentes e sensíveis que crescem e se tornam homens repletos de conflitos e inibições, divididos entre o dever e o desejo, a ânsia de fazer parte de algo maior e a urgência da revolta.
Em seu novo romance, o provocador, mas desigual "The Plot Against America" (O Complô Contra a América), Roth procura imaginar um destino alternativo para os Estados Unidos, estando em jogo os trunfos mais importantes possíveis. E se, pergunta, o ás da aviação Charles A. Lindbergh (que, na vida real, reunia sentimentos anti-semitas com política isolacionista) tivesse derrotado Franklin D. Roosevelt na eleição de 1940, e instituísse uma agenda política pró-nazista?
É claro que esse tipo de ficção histórica não chega a constituir novidade. Em "It Can't Happen Here" (Não Pode Acontecer Aqui), Sinclair Lewis retratou os EUA como ditadura fascista governada por um demagogo da Nova Inglaterra. Em "The Man in the High Castle" (O Homem do Castelo Alto), Philip K. Dick criou uma imaginária América sob ocupação japonesa e nazista, onde a escravidão teria voltado a ser legal, e os judeus se esconderiam por trás de nomes falsos.
O que diferencia o pesadelo histórico imaginado por Roth desses outros livros é o fato de ser narrado por um menino chamado Philip Roth, e de descrever as conseqüências de um governo anti-semita para o cotidiano dos membros de uma família americana comum, que, por acaso, é judaica.
Mas, enquanto as partes do livro que falam da fictícia família Roth realizam um trabalho discreto -e, por vezes, profundamente comovente- de mostrar com quanta violência os acontecimentos públicos podem interferir no âmbito privado, em nenhum momento o livro convence o leitor a ignorar que, em 1940, Roosevelt conquistou seu terceiro mandato presidencial e que o nazismo não triunfou nos Estados Unidos.
Essa falha de convencimento se deve em grande medida ao fato de que o romance é baseado não no desenlace de uma guerra, mas na produção, pelo aparato social de um país, de um resultado muito diferente daquele que de fato aconteceu e da relutância de Roth em imaginar como e porque isso poderia ter acontecido.
Embora o autor tente, como nos romances de sua "Trilogia Americana", fazer uma imagem ampla dos Estados Unidos, criando uma parábola sobre a perda da inocência e o custo do "enlouquecer do americano nativo", "The Plot Against America" se apressa a chegar a um final despropositado, embora inteligente.
A história transcorre numa paisagem política que parece ser de uma história de quadrinhos, algo que poderia funcionar no cinema ou num romance satírico, mas que parece estranhamente tênue aqui, especialmente quando o primeiro plano é ocupado por personagens tão realistas e psicologicamente convincentes quanto os membros da família Roth.
Na atual era Bush, "The Plot Against America" é um romance que pode ser lido ou como aviso quanto ao perigo do isolacionismo ou advertência quanto aos perigos da Lei Patriota e a ameaça às liberdades civis. Mas também pode ser lido como uma tentativa não inteiramente bem-sucedida de fundir dois gêneros incompatíveis: o thriller político-histórico e a história sobre amadurecimento pessoal de seus personagens.
A família Roth descrita no livro é, sob muitos aspectos, a mesma que o autor apresentou em "The Facts" (1988) e em seu livro de memórias "Patrimony" (1991): o jovem Philip, ainda "a criança bem comportada, obediente em casa e na escola"; seu irmão, Sandy, alguns anos mais velho e já um artista de talento; a mãe sempre atenta e devotada, Bess, e o pai corajoso e persistente, Herman, um homem que seu filho certa vez descreveu como dotado de "noções absolutamente totalitárias sobre o bom e o mau."
Em "The Facts", Roth escreveu sobre sua infância idílica em Newark: embora a Segunda Guerra fosse uma ameaça, era distante e abstrata, e o jovem Philip sentia que seu mundo era "um reduto tão seguro e pacífico para mim quanto sua comunidade rural seria para um garoto de fazenda em Indiana". A família era "um reduto contra qualquer ameaça, desde o isolamento pessoal até a hostilidade dos não judeus".
Em "The Plot Against America", tudo isso mudou. Com Lindbergh na Casa Branca e a violência anti-semita nas ruas, Philip de repente vê seus pais assustados e incapazes de protegê-lo. Ele ouve falar de amigos e vizinhos que fogem para o Canadá e vê outros sendo obrigados a mudar-se, sob um programa de transferência imposto pelo governo.
As cenas da família Roth em casa são intercaladas com longos relatos sobre a presidência pró-Hitler de Lindbergh (extrapolados exageradamente a partir de relatos historicamente documentados sobre declarações anti-semitas do Lindbergh real e de seu envolvimento no isolacionista movimento América Primeiro).
Lê-se que Lindbergh assinou acordos com a Alemanha nazista e o Japão imperial, que o radialista Walter Winchell tornou-se o adversário mais expressivo do presidente e que tumultos anti-semitas eclodiram em todo o país.
A razão secreta por trás dos atos de Lindbergh é apresentada aos leitores de maneira abrupta, sem cerimônia, e o romance como um todo também chega a um final abrupto que apenas realça a astúcia descuidada das projeções históricas de Roth.
O verdadeiro drama no livro não diz respeito à Presidência de Lindbergh ou à Segunda Guerra Mundial, mas ao impacto desses fatos tremendos sobre a família Roth e sobre a consciência do Philip menino. O drama consiste nele vendo sua mãe assustada, mas corajosa, tentando manter sua família em segurança, diante de fatos que estão totalmente fora de seu controle, e em assistir a seu pai furioso, mas determinado, tentando conciliar suas expectativas em relação ao mundo com uma realidade nova e terrível.
No final, este livro procura vincular as preocupações pessoais de boa parte da ficção da primeira fase de Philip Roth com o quadro histórico abrangente de sua trilogia americana.
Se o olhar telescópico lançado sobre os EUA em "The Plot Against America" não possui a verossimilhança e a observação social aguda encontradas em "Pastoral Americana" e "A Marca Humana", o olhar microscópico voltado à família Roth não deixa de nos oferecer um vislumbre íntimo do encontro difícil de uma família com a história.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Música: Gil e David Byrne lançam Creative Commons em NY
Próximo Texto: Paris Hilton lança guia que ensina a libertar "herdeira interior"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.