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MANUEL DA COSTA PINTO
O extático e o estático
Longos poemas de Helder, atravessados por veias e nervos, são avessos a simbolismos e alegorias
"LEITORES e críticos sentem
uma espécie de pânico, ou
terror, em falarem ou escreverem sobre Herberto Helder",
afirma o ensaísta português Eduardo Prado Coelho em "O Cálculo das
Sombras".
Essa síndrome experimentada pelos admiradores de Helder se deve
ao fato de que o vocabulário analítico parece insuficiente para dar conta dessa obra ímpar, que acaba de ganhar edição quase completa (pois
não inclui a prosa de "Os Passos em
Volta" ou "Photomaton & Vox").
Vale lembrar que a palavra "crítica" deriva do grego "krínó" ("separar", "discernir"). Pois bem: tudo o
que a poesia de Helder não admite é
a separação, o ato de isolar alguns
elementos e totalizá-los numa interpretação.
Já o título dessa coletânea -"Ou o
Poema Contínuo"- dá uma idéia de
fluxo ininterrupto, como se os primeiros livros, "A Colher na Boca" e
"Poemacto", de 1961, já contivessem
todo o desenvolvimento que levaria
a obras como "Última Ciência"
(1988) e "Os Selos" (1989).
Não se pode, porém, falar de evolução no caso desse autor nascido
em Funchal (ilha da Madeira) em
1930, pois sua poesia é feita de eternos retornos e permanências. Comentando a própria produção, ele
afirma que "o princípio combinatório é, na verdade, a base lingüística
da criação poética" -frase que permitiu a Pedro Schachtt Pereira identificar em poema de "A Máquina Lírica" (1963) uma estética da repetição, que consiste em "investir desmesuradamente numa limitada série de palavras, manuseá-las até que
produzam vínculos inesperados".
Esse poema (cujo título é o primeiro verso) começa com uma seqüência -"Todas pálidas, as redes
metidas na voz./ Cantando os pescadores remavam/ no ocidente -e as
grandes redes/ leves caíam pelos
peixes abaixo"- que anuncia variações encantatórias e se enreda na visão de um "Deus metido então nas
redes", transformando-se em uma
trama na qual acabam por se encontrar elementos de natureza distinta:
o alto e o baixo, o abstrato e o concreto, o divino e o prosaico. O extático e o estático.
Definido ora como surrealista tardio (por causa das analogias que violam as delimitações entre espaço físico e imaginário), ora como hermético, Helder trabalha com um léxico
limitado, reiterativo, e com um repertório de temas dominado pela
escuta do corpo, por alucinações familiares e imagens da morte.
Seus longos poemas -atravessados por veias e nervos, chagas e sangue, peixes e pedras- são avessos a
simbolismos e alegorias, o que deveria ser suficiente para afastar dele o
epíteto (supostamente elogioso) de
poeta "órfico".
Não há mistério nessa voz que cinge a prosa: "Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos
artesãos?". Ocorre que o artesanato
da poesia é tão anacrônico quanto a
relação perdida do homem com seu
mundo -e por isso conserva, como
os mitos, uma crueza límpida, porém obscura às explicações.
OU O POEMA CONTÍNUO
Autor: Herberto Helder
Editora: A Girafa
Quanto: R$ 49 (536 págs.)
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