São Paulo, sábado, 23 de setembro de 2006

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MANUEL DA COSTA PINTO

O extático e o estático

Longos poemas de Helder, atravessados por veias e nervos, são avessos a simbolismos e alegorias

"LEITORES e críticos sentem uma espécie de pânico, ou terror, em falarem ou escreverem sobre Herberto Helder", afirma o ensaísta português Eduardo Prado Coelho em "O Cálculo das Sombras".
Essa síndrome experimentada pelos admiradores de Helder se deve ao fato de que o vocabulário analítico parece insuficiente para dar conta dessa obra ímpar, que acaba de ganhar edição quase completa (pois não inclui a prosa de "Os Passos em Volta" ou "Photomaton & Vox").
Vale lembrar que a palavra "crítica" deriva do grego "krínó" ("separar", "discernir"). Pois bem: tudo o que a poesia de Helder não admite é a separação, o ato de isolar alguns elementos e totalizá-los numa interpretação.
Já o título dessa coletânea -"Ou o Poema Contínuo"- dá uma idéia de fluxo ininterrupto, como se os primeiros livros, "A Colher na Boca" e "Poemacto", de 1961, já contivessem todo o desenvolvimento que levaria a obras como "Última Ciência" (1988) e "Os Selos" (1989).
Não se pode, porém, falar de evolução no caso desse autor nascido em Funchal (ilha da Madeira) em 1930, pois sua poesia é feita de eternos retornos e permanências. Comentando a própria produção, ele afirma que "o princípio combinatório é, na verdade, a base lingüística da criação poética" -frase que permitiu a Pedro Schachtt Pereira identificar em poema de "A Máquina Lírica" (1963) uma estética da repetição, que consiste em "investir desmesuradamente numa limitada série de palavras, manuseá-las até que produzam vínculos inesperados".
Esse poema (cujo título é o primeiro verso) começa com uma seqüência -"Todas pálidas, as redes metidas na voz./ Cantando os pescadores remavam/ no ocidente -e as grandes redes/ leves caíam pelos peixes abaixo"- que anuncia variações encantatórias e se enreda na visão de um "Deus metido então nas redes", transformando-se em uma trama na qual acabam por se encontrar elementos de natureza distinta: o alto e o baixo, o abstrato e o concreto, o divino e o prosaico. O extático e o estático.
Definido ora como surrealista tardio (por causa das analogias que violam as delimitações entre espaço físico e imaginário), ora como hermético, Helder trabalha com um léxico limitado, reiterativo, e com um repertório de temas dominado pela escuta do corpo, por alucinações familiares e imagens da morte. Seus longos poemas -atravessados por veias e nervos, chagas e sangue, peixes e pedras- são avessos a simbolismos e alegorias, o que deveria ser suficiente para afastar dele o epíteto (supostamente elogioso) de poeta "órfico".
Não há mistério nessa voz que cinge a prosa: "Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?". Ocorre que o artesanato da poesia é tão anacrônico quanto a relação perdida do homem com seu mundo -e por isso conserva, como os mitos, uma crueza límpida, porém obscura às explicações.


OU O POEMA CONTÍNUO     
Autor: Herberto Helder
Editora: A Girafa
Quanto: R$ 49 (536 págs.)


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