São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2006

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Henri Salvador reata com o Copa

No disco "Révérence", o cantor guianense usa arranjos de Jacques Morelenbaum e conjuga sons brasileiros e africanos

Em 1942, músico veio ao Brasil para temporada de shows no hotel Copacabana Palace, no Rio, mas acabou no palco do Cassino da Urca

VÉRONIQUE MORTAIGNE
DO "MONDE"

O riso de Henri Salvador se assemelha a um bolo de casamento: piramidal, em crescendo, recoberto de enfeites sonoros, de cascatas ascendentes. Sempre recém-casado, Henri Salvador, 89, está lançando "Révérence", excelente disco.
Ele veste um terno branco, com uma blusa rosa de gola alta sob o paletó, Nikes brilhantes nos pés. Porque mora na place Vendôme, almoça no vizinho Ritz. E ri... do risoto, da dama que fala alto e com sotaque forte em um celular novinho, da sorte que o levou ao Copacabana Palace, no Rio, onde tomou uma "desgelada" com Ray Ventura et ses Collégiens, que haviam se refugiado lá nos anos de ocupação nazista da França.
Sorte, melhor explicar, para os desocupados e prósperos freqüentadores do hotel. Porque, em 1942, as burguesas e os playboys do Copa andavam desanimados. Foram precisos alguns dias, alguns agrados, para voltar a abrilhantar suas vidas.
Henri Salvador queria partir, mas um gerente hábil lhe ofereceu um contrato cheio de zeros, que desapareceram depois da assinatura. Quebrado, quase falido, ele teve tempo de construir uma reputação, quase uma lenda, no Cassino da Urca, até que Ray Ventura lhe enviou uma passagem para a Europa via América (do Norte).
Henri Salvador é americano. Do sul, nascido na Guiana, filho de um professor e de uma mãe de origem indígena, amazônica. Por isso, "Révérence" é tremendamente americano-brasileiro, decerto, enquadrado pela sombra tutelar de Tom Jobim, e afro-americano, inspirado por "Hallelujah! I Love Her So!", que, na lógica peculiar de Salvador, se torna "Alléluia! Je l'ai Dans La Peau". Os arranjos são marcados por violinos sedosos, em formatos amplos, grandes orquestrações, uma escolha feita por Henri Salvador depois de assistir a Caetano Veloso no Théâtre du Châtelet, em Paris, em 2005. O brasileiro estava apresentando seu espetáculo "A Foreign Sound", suntuosas releituras de standards norte-americanos com arranjos de Jacques Morelenbaum.
No mesmo ano, Salvador deixou a gravadora Virgin-EMI e assinou com a independente V2. O primeiro sinal do casamento feliz entre Salvador e a V2: a exigência, acatada, de ter Morelenbaum como arranjador, e gravar o disco no Rio. E foi assim que Salvador voltou ao Copacabana Palace.
"Três semanas de prazer. Piscina, aperitivos, uma soneca vespertina, chegar ao estúdio lá pelas 18h. Um álbum sem sofrimento." O disco tem 13 faixas porque, atendendo à superstição, tudo na vida de Salvador é regido pelo 13 -"são 13 letras no meu nome".
O "senhor Treze" adora contar histórias. Caetano Veloso chegou ao estúdio, na Barra, "sofrendo de completo jet lag, esgotado, descompensado". Vinha de Paris, onde havia cantado em uma cerimônia da Cinemateca Francesa em homenagem a Pedro Almodóvar. "Eu perguntei quem era aquele maluco, e minha mulher Catherine murmurou que era Veloso."
Droga. Veloso jamais deixou de cantar "Dans Mon Île", dedicando elegantemente a canção ao compositor, diante de platéias francesas espantadas para as quais Salvador não era mais que um comediante antiquado. Isso aconteceu antes de "Chambre Avec Vue", álbum que vendeu dois milhões de cópias em 2000 e serviu para restabelecer o equilíbrio e expor a ternura e a suavidade do Salvador de "Dans Mon Île".

Dois segredos
O Brasil o recebeu com festa. Lula o condecorou em 2006; o ministro da Cultura, Gilberto Gil, tomou do violão. Foram-lhe reservados aposentos no Copacabana Palace, um nome que faz sonhar. Salvador gravou o disco aos 89 anos, tendo certamente perdido o alcance da voz, mas não seu colorido.
Com a idade dele, "as pessoas tremem", mas ele não. "Minha mãe me ensinou dois segredos... Uma receita de ungüento de folhas e ervas contra mordidas de cobra e..." O segundo ele esqueceu. Mas vai lembrar quando for velho (risos). Um negro muito velho o ensinou a procurar ouro na Guiana. Ele se lembra. A mãe cantava para ele com uma voz maravilhosa. Ele compôs "Le Loup, la Biche et le Chevalier".
Boris Vian comentou que a gíria usada na canção se assemelhava à do jazz, mas com melodias "sedosas". Ele compôs o "Blues du Dentiste". De tudo isso, aprendeu que "a dúvida segue a certeza de perto".
De seus anos dourados, Salvador regravou "Cherche la Rose" (cantada com Caetano Veloso no novo álbum). Entre as composições mais novas, há letras de Claude Moine, George Moustaki e Gisèle Molard. E Daniel Schmitt, velho amigo de Cannes que ofereceu a ele "Mourir à Honfleur", homenagem à escritora Françoise Sagan, morta em 2004.


tradução PAULO MIGLIACCI


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