São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2007

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31ª Mostra de SP

Crítica/"4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias"

Romeno extrai poesia de tempo sombrio

Cristian Mungiu, vencedor de Cannes, cria trama sobre aborto para mostrar país em crise durante a ditadura de Ceausescu

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Em geral, mencionar que um filme trata de aborto já seria o bastante para sugerir as sensações desagradáveis às quais tende a submeter o espectador. No caso de "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", que recebeu a Palma de Ouro e o prêmio da crítica de melhor filme em Cannes neste ano, é preciso sublinhar essa característica. Perto dele, as abordagens de Claude Chabrol em "Um Assunto de Mulheres" (1988) e de Mike Leigh em "O Segredo de Vera Drake" (2004) parecem relativamente suaves.
Sublime contraste: tamanha aridez se inscreve em conjunto de obras que o diretor e roteirista romeno Cristian Mungiu batiza de "histórias da era de ouro", sobre o período de 1965 a 1989, quando a Romênia foi vítima da ditadura de Nicolae Ceausescu (tema, na 30ª Mostra, de "Como Festejei o Fim do Mundo" e "A Leste de Bucareste"). Tempos sombrios de um estado policial semeando o medo (acompanhado de corrupção) no cotidiano e tutelando a todos como crianças.
Em sociedade como essa, não é de estranhar que a frágil Gabita (Laura Vasiliu) ainda se comporte de modo infantil, embora seja universitária. Um regime autoritário que isola e "protege", determinando o tempo todo aos cidadãos o que se pode fazer e como fazer, equivale a um pai onipresente que impede os filhos de desenvolver autonomia. O problema de Gabita, contudo, é bem adulto: ela engravidou e quer abortar.
Em quaisquer circunstâncias, já seria um pesadelo de bom tamanho. Na Romênia sufocante recriada por Mungiu, multiplique por dez. O ponto de vista, no entanto, é o de Otilia (Anamaria Marinca), companheira de quarto de Gabita no alojamento estudantil e, ao que tudo indica, a única amiga na qual pode confiar. E ponha confiança aí: o que uma leva a outra a fazer exige muito mais do que apenas solidariedade.
Ao instalar o espectador ao lado de Otilia, e não de Gabita, Mungiu obtém um trunfo considerável, que mantém do início ao fim com notável rigor estético. Afastar o foco narrativo do pivô dos acontecimentos serve à potencialização dramática do que não se sabe direito se está ocorrendo. De quebra, Otilia carrega seu próprio fardo, que se integra com harmonia, com informações sobre a "nomenclatura" do regime de Ceausescu, ao registro cáustico do tal período "dourado".
Estruturado em longos planos-seqüência, alguns dos quais com uso potente de elementos que permanecem fora de quadro, "4 Meses" encontra no minimalismo dos elementos em cena outro grande trunfo, a um só tempo de ordem ética, preservando a abordagem da acusação de sensacionalismo (ainda que uma única cena, breve, mas impactante, sirva sozinha para fomentar um bocado de discussão), e também de ordem estética, buscando poesia onde ela não parecia capaz de se revelar.


4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS
Direção:
Cristian Mungiu
Produção: França/Romênia, 2007
Com: Anamaria Marinca, Laura Vasiliu
Quando: hoje, às 20h, no Unibanco Arteplex 3; amanhã, às 22h20, no Cine Bombril 1; e domingo, às 15h20, no Espaço Unibanco 3
Avaliação: ótimo


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