|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
DJ de imagens
É difícil pensar num artista mais sintonizado com o seu tempo do que Douglas Gordon
O ESCOCÊS Douglas Gordon é o
epítome da arte contemporânea. É difícil pensar num
artista mais sintonizado com o seu
tempo. "Timeline" (linha de tempo),
exposição itinerante com alguns de
seus vídeos mais consagrados, originalmente organizada pelo MoMA,
fica até 5 de novembro no Museu de
Arte Latino-Americana de Buenos
Aires (Malba).
No catálogo da exposição, há uma
lista com os nomes das pessoas que
o artista conheceu até hoje -e dos
quais ainda consegue se lembrar. Há
também uma série de imagens de fatos e personalidades públicas que
marcaram o noticiário desde 1966,
ano em que ele veio ao mundo
-uma ampliação da sua certidão de
nascimento encabeça a série de imagens. O texto de introdução, assinado por Klaus Biesenbach, curador
do departamento de mídia e cinema
do MoMA, diz que Gordon "esculpe
o tempo".
O que significa exatamente isso?
Pôr-se no centro da obra. Já que o artista envelhece e o tempo se manifesta em seu corpo, basta transformar
sua vida em narrativa para "esculpir
o tempo". A auto-referência é o lugar-comum da arte contemporânea.
Muitos trabalhos de Gordon fazem a
encenação de si. O artista expõe-se
beijando um espelho ou exibe inscrições tatuadas no corpo. Desde 1999,
ele se faz fotografar anualmente ao
lado de uma representação de si
mesmo, em cera. Para realçar, por
comparação com a figura imóvel no
tempo, a passagem deste.
A auto-encenação impera mesmo
quando a representação do artista
parece estar ausente, como é o caso
da lista de nomes e da série de imagens públicas no catálogo da exposição. Tanto os nomes como as imagens têm apenas um ponto em comum: marcaram a vida do artista e,
portanto, exprimem sua experiência, compõem um auto-retrato ausente.
Um dos clichês que mais se prestam aos interesses do tempo em que
vivemos é dizer que não há diferença
entre original e cópia. O mundo da
reciclagem e da reapropriação é também o da vontade de se exprimir a
qualquer preço, mesmo quando não
se tem nada a dizer além do eco distorcido do que já foi dito por outros.
Se eu faço a lista das minhas preferências ou impressões (ou das pessoas que conheci), já estou fazendo
arte. Se exponho a minha experiência pessoal, já sou artista. A criação
foi reduzida à expressão da experiência do sujeito, por mais comum
que ela seja, limitando ao mesmo
tempo as possibilidades de exercício
da subjetividade (e de invenção) ao
grau zero. Nesse contexto, não pode
haver mesmo original, pois significaria transferir a atenção de volta à
criação, abandonando o foco sobre o
sujeito que a concebeu e revelando
assim a fragilidade da obra e da sua
produção de sentido. É esse também
o mundo dos DJs. A obra é reapropriação. Já não faz sentido falar em
composição ou criação original
-embora os militantes mais integrados ao presente possam dizer
que, no fundo, nunca fez.
Uma das obras mais celebradas de
Gordon é "Psicose 24 Horas", na
qual o artista estende o tempo de
projeção de "Psicose", de Alfred
Hitchcock, a 24 horas, num quadro-a-quadro lentíssimo. O objetivo é
distorcer (e recriar por meio de uma
nova apreensão) um ícone da cultura de massa. A reapropriação passa a
ser, à maneira dos DJs, recriação. A
ponto de o curador da exposição ser
capaz de escrever no catálogo - recorrendo a uma interpretação muito pessoal e peculiar dos conceitos
propostos por Gilles Deleuze- que
Gordon alçou o filme à complexidade da "imagem-tempo", enquanto o
original de Hitchcock permanece
um passo atrás, na simplicidade da
"imagem-movimento".
Ao contrário do que ocorreu com
Warhol, cuja influência na obra de
Gordon é incontestável, já não dá
para dizer que a substituição da realidade por imagens da cultura de
massa possa provocar algum tipo de
revolução nas artes. Em "Faz de
Morto: Tempo Real" (2003), um
elefante de circo obedece às ordens
do artista, deitando-se no chão de
uma galeria, em Nova York, e fingindo-se de morto. O vídeo, projetado
originalmente na própria galeria,
em silêncio, em duas grandes telas e
dois pequenos televisores, reencena
a execução de um elefante assassino,
filmada em Nova York no começo
do século. Dentre todas as especulações que a reencenação pode provocar (sobre o real e a representação,
sobre a cultura de massa, a manipulação e a circulação de imagens), a
mais desoladora é que, nesse mundo
ao mesmo tempo esgotado de idéias
e saturado de informações visuais, à
arte (e, curiosamente, também à tão
cultuada experiência pessoal) só
resta viver de efeitos de segunda
mão.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Mostra aborda sexo ao longo da história Índice
|