São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

DJ de imagens

É difícil pensar num artista mais sintonizado com o seu tempo do que Douglas Gordon

O ESCOCÊS Douglas Gordon é o epítome da arte contemporânea. É difícil pensar num artista mais sintonizado com o seu tempo. "Timeline" (linha de tempo), exposição itinerante com alguns de seus vídeos mais consagrados, originalmente organizada pelo MoMA, fica até 5 de novembro no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba).
No catálogo da exposição, há uma lista com os nomes das pessoas que o artista conheceu até hoje -e dos quais ainda consegue se lembrar. Há também uma série de imagens de fatos e personalidades públicas que marcaram o noticiário desde 1966, ano em que ele veio ao mundo -uma ampliação da sua certidão de nascimento encabeça a série de imagens. O texto de introdução, assinado por Klaus Biesenbach, curador do departamento de mídia e cinema do MoMA, diz que Gordon "esculpe o tempo".
O que significa exatamente isso? Pôr-se no centro da obra. Já que o artista envelhece e o tempo se manifesta em seu corpo, basta transformar sua vida em narrativa para "esculpir o tempo". A auto-referência é o lugar-comum da arte contemporânea. Muitos trabalhos de Gordon fazem a encenação de si. O artista expõe-se beijando um espelho ou exibe inscrições tatuadas no corpo. Desde 1999, ele se faz fotografar anualmente ao lado de uma representação de si mesmo, em cera. Para realçar, por comparação com a figura imóvel no tempo, a passagem deste.
A auto-encenação impera mesmo quando a representação do artista parece estar ausente, como é o caso da lista de nomes e da série de imagens públicas no catálogo da exposição. Tanto os nomes como as imagens têm apenas um ponto em comum: marcaram a vida do artista e, portanto, exprimem sua experiência, compõem um auto-retrato ausente.
Um dos clichês que mais se prestam aos interesses do tempo em que vivemos é dizer que não há diferença entre original e cópia. O mundo da reciclagem e da reapropriação é também o da vontade de se exprimir a qualquer preço, mesmo quando não se tem nada a dizer além do eco distorcido do que já foi dito por outros.
Se eu faço a lista das minhas preferências ou impressões (ou das pessoas que conheci), já estou fazendo arte. Se exponho a minha experiência pessoal, já sou artista. A criação foi reduzida à expressão da experiência do sujeito, por mais comum que ela seja, limitando ao mesmo tempo as possibilidades de exercício da subjetividade (e de invenção) ao grau zero. Nesse contexto, não pode haver mesmo original, pois significaria transferir a atenção de volta à criação, abandonando o foco sobre o sujeito que a concebeu e revelando assim a fragilidade da obra e da sua produção de sentido. É esse também o mundo dos DJs. A obra é reapropriação. Já não faz sentido falar em composição ou criação original -embora os militantes mais integrados ao presente possam dizer que, no fundo, nunca fez.
Uma das obras mais celebradas de Gordon é "Psicose 24 Horas", na qual o artista estende o tempo de projeção de "Psicose", de Alfred Hitchcock, a 24 horas, num quadro-a-quadro lentíssimo. O objetivo é distorcer (e recriar por meio de uma nova apreensão) um ícone da cultura de massa. A reapropriação passa a ser, à maneira dos DJs, recriação. A ponto de o curador da exposição ser capaz de escrever no catálogo - recorrendo a uma interpretação muito pessoal e peculiar dos conceitos propostos por Gilles Deleuze- que Gordon alçou o filme à complexidade da "imagem-tempo", enquanto o original de Hitchcock permanece um passo atrás, na simplicidade da "imagem-movimento".
Ao contrário do que ocorreu com Warhol, cuja influência na obra de Gordon é incontestável, já não dá para dizer que a substituição da realidade por imagens da cultura de massa possa provocar algum tipo de revolução nas artes. Em "Faz de Morto: Tempo Real" (2003), um elefante de circo obedece às ordens do artista, deitando-se no chão de uma galeria, em Nova York, e fingindo-se de morto. O vídeo, projetado originalmente na própria galeria, em silêncio, em duas grandes telas e dois pequenos televisores, reencena a execução de um elefante assassino, filmada em Nova York no começo do século. Dentre todas as especulações que a reencenação pode provocar (sobre o real e a representação, sobre a cultura de massa, a manipulação e a circulação de imagens), a mais desoladora é que, nesse mundo ao mesmo tempo esgotado de idéias e saturado de informações visuais, à arte (e, curiosamente, também à tão cultuada experiência pessoal) só resta viver de efeitos de segunda mão.


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