São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2010

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CRÍTICA DRAMA

Raúl Ruiz faz genealogia da paixão desastrada

Em "Mistérios de Lisboa", diretor chileno transforma em obra-prima folhetim do século 19 de Camilo Castelo Branco

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

A longuíssima duração -quatro horas e meia!- é um fator que pode desencorajar o espectador de ver "Mistérios de Lisboa". Mas tentarei dar algumas razões para que o público não desanime da empreitada.
Primeiramente, trata-se de uma obra-prima, para resumir de imediato o valor deste longa extraordinário. O diretor chileno Raúl Ruiz, 69, chega aqui ao auge de sua maestria cinematográfica. Tudo no filme se organiza à perfeição, desde a espantosa construção dos enquadramentos até a atuação irretocável do elenco.
Além disso, Ruiz conseguiu reunir sua linguagem intelectual e labiríntica à fluência própria das narrativas clássicas nesta obra que pode ombrear outras grandes sagas cinematográficas. De modo que seguimos a trama com interesse crescente.
"Mistérios de Lisboa" tem duas versões diversas: uma para a TV (de cinco horas e meia), outra para o cinema. A essência de ambas é a mesma: o folhetim -e, portanto, a novela ou a minissérie.
O livro de Camilo Castelo Branco (1825-1890), de onde nasceu o filme, é ele mesmo um gigantesco folhetim. A partir da história de um órfão ansioso por descobrir sua origem, descortina uma multidão de intrigas que traçam um infindável panorama da sociedade oitocentista.
No filme, as histórias também parecem não ter fim. Um mistério desencadeia outro mistério e o drama do órfão se transforma na genealogia delirante de uma série de paixões desastradas, até o ponto em que todos os personagens estão absurdamente implicados entre si.
É uma maneira provocativa de abordar a lógica do folhetim, ressaltando os seus artifícios ficcionais. Mas não se deve ver nisso uma tentativa de depreciação do gênero.
Ao contrário. São justamente esses artifícios que interessam ao diretor: a circularidade da intriga, o uso sem parcimônia de convenções romanescas e os desafios à verossimilhança lançados pela retórica narrativa. Ele exacerba as astúcias do estilo folhetinesco, acrescentando-lhe elevado "savoir faire" cinematográfico, além de inteligência analítica.
Não é contra o folhetim que Ruiz dirige a sua notória ironia em "Mistérios de Lisboa", mas contra a noção de livre arbítrio que o filme descreve como a maior de nossas ilusões compartilhadas.
No fundo, por mais que nos agitemos, lutemos e nos apaixonemos, tendo a impressão de controlar a nós mesmos, para Ruiz não passamos de um conjunto de marionetes à mercê do desígnio misterioso das histórias neste mundo cuja substância é a ficção.

MISTÉRIOS DE LISBOA

DIREÇÃO Raúl Ruiz
QUANDO hoje, às 16h, e dia 28/10, às 13h30, no Unibanco Arteplex; e dia 31/10, às 14h, no Espaço Unibanco Pompeia
CLASSIFICAÇÃO 12 anos
AVALIAÇÃO ótimo


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