São Paulo, sexta-feira, 23 de novembro de 2001

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Adaptação de best-seller de Ricardo Piglia, "Plata Quemada" chega aos cinemas de São Paulo

Corações e mentes

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Na primeira vez em que leu "Plata Quemada", best-seller de Ricardo Piglia, o cineasta argentino Marcelo Piñeyro, 45, não viu no livro do conterrâneo a possibilidade do filme que realizou e estréia hoje em São Paulo. "Achei-o muito violento", afirma.
Na segunda vez em que a novela policial lhe caiu nas mãos, Piñeyro estava disposto a atravessar "até uma lista telefônica". Menos mal que um colega do vôo que retornava de Havana para Buenos Aires -e fez uma parada não prevista de 12 horas no aeroporto de Caracas, na Venezuela- tinha no bolso um exemplar do livro e emprestou-o a Piñeyro.
"Na página 20 eu já enxergava ali um filme espantoso. Só nessa segunda leitura percebi os enormes personagens construídos por Piglia e vi na trama uma grande história de amor", conta.
Os amantes são Angel (Eduardo Noriega) e Nene (Leonardo Sbaraglia), parceiros também no crime. A história (real) reconstitui a mais audaciosa (e malograda) ação da dupla, engajada no assalto a um carro-forte na Argentina.
Com Angel ferido e dois policiais mortos na ação, os ladrões e dois de seus comparsas decidem esconder-se em Montevidéu, no Uruguai, de onde pretendiam fugir para o Brasil, na tentativa de escapar definitivamente à fúria vingativa da polícia argentina.
No livro, as ações exteriores e o burburinho interno dos personagens são relatados em múltiplas vozes narrativas. A Piñeyro pareceu que o recurso, embora fosse "muito atrativo", não resultaria adequado ao cinema.
Depois de um ano e meio trabalhando no roteiro, o diretor decidiu arriscar-se "num caminho da objetivação à subjetivação", que é percorrido no filme em três capítulos bem demarcados, nos quais se deriva de um narrador onisciente para o mais íntimo ponto de vista dos personagens.
"Mudar a voz do relato em cada capítulo é uma aposta que você sabe porque faz, mas não sabe quantos vão conseguir entendê-la ou pensarão que foi um erro."
Contudo não foi em razão de suas escolhas formais que o cineasta enfrentou reprimendas ao filme em seu país.
Incomodou ao departamento de classificação portenho o tema e também sua abordagem. O título de Piñeyro foi vetado para exibições na TV e proibido nos cinemas para menores de 18 anos, mesmo acompanhados dos pais. Usualmente, a mais rigorosa classificação na Argentina interdita uma obra a menores de 16, desde que desacompanhados dos pais.
A justificativa para a decisão em relação a "Plata Quemada" foi a de que o filme "não tem um olhar condenatório sobre os fatos que narra e, particularmente, sobre a relação homossexual dos protagonistas", relata Piñeyro.
Ao tomar conhecimento dessa sentença, o cineasta disse que processaria seus responsáveis, pelo evidente caráter discriminatório, prática que fere a Constituição argentina. "Desde então, eles renovaram a proibição duas vezes, mas agora sem justificativas", afirma o diretor, que recorre pela terceira vez.
A reação oficial ao filme não apenas espantou, como surpreendeu o cineasta. "Esse episódio me revelou que há bolsões muito obscurantistas em nossa sociedade. Em minha enorme ingenuidade, acreditava que isso não existisse mais", diz.
À parte as restrições na Argentina, Piñeyro está satisfeito com a carreira de "Plata Quemada" no exterior e sua boa acolhida, sobretudo na Espanha, co-produtora da fita. É também da Espanha que o diretor argentino "importou" o ator Eduardo Noriega, a quem admira desde "Thesis" e "Abre los Ojos", os dois primeiros longas do hoje incensado Alejandro Amenábar ("Os Outros") .
"Noriega tem uma simultânea dureza e fragilidade que me parecia característica-chave para o personagem", diz o diretor. O produtor espanhol tentou demover Piñeyro da idéia do convite e disse que o ator jamais aceitaria papel semelhante. O cineasta decidiu fazer pessoalmente a proposta e, antes mesmo de formulá-la, ouviu de Noriega uma entusiasmante reação. "Ele me disse que "Cenizas del Paraíso" era seu filme favorito", afirma.
Do elenco de "Cenizas del Paraíso" -o longa que Piñeyro havia ido apresentar no Festival de Havana, em 97, quando "estacionou" no aeroporto de Caracas-, o cineasta manteve em "Plata Quemada" Sbaraglia, seu ator mais constante, e Leticia Bredice, conhecida no Brasil por "Nove Rainhas". Bredice interpreta uma prostituta argentina que vive no Uruguai e se envolve com Nene.
Os atores ensaiaram durante três meses e filmaram ao longo de outros três. O filme, que custou US$ 3,2 milhões, chegou a ter a produção suspensa, por problemas de financiamento.
Foi quando os produtores propuseram a Piñeyro rodá-lo na fronteira entre Tijuana (México) e Texas (Estados Unidos).
"Pensei durante alguns dias e respondi que definitivamente não. Ou faria "Plata Quemada" na Argentina e no Uruguai ou não o faria. O filme, para mim, tinha esse gosto de tango, de jazz, do rio da Prata, a tristeza das ruas de Montevidéu...", diz.
Piñeyro diz que não carrega a deliberada preocupação de dotar seus filmes de uma identidade nacional, mas não abre mão "do sabor local, indispensável à história dos personagens".
"Neste filme, a homofobia interna dos personagens tem muito a ver com o rio da Prata. Seguramente isso existe em todas as outras partes do mundo e foi tanto mais intenso nos anos 60. Mas há expressões diferentes. Eu queria captar uma impressão relativa a Buenos Aires e Montevidéu."
Em tempo: a classificação no Brasil também indica "Plata Quemada" para maiores de 18 anos.


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