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Adaptação de best-seller de Ricardo Piglia, "Plata Quemada" chega aos cinemas de São Paulo
Corações e mentes
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Na primeira vez em que leu
"Plata Quemada", best-seller de
Ricardo Piglia, o cineasta argentino Marcelo Piñeyro, 45, não viu
no livro do conterrâneo a possibilidade do filme que realizou e estréia hoje em São Paulo. "Achei-o
muito violento", afirma.
Na segunda vez em que a novela
policial lhe caiu nas mãos, Piñeyro estava disposto a atravessar
"até uma lista telefônica". Menos
mal que um colega do vôo que retornava de Havana para Buenos
Aires -e fez uma parada não
prevista de 12 horas no aeroporto
de Caracas, na Venezuela- tinha
no bolso um exemplar do livro e
emprestou-o a Piñeyro.
"Na página 20 eu já enxergava
ali um filme espantoso. Só nessa
segunda leitura percebi os enormes personagens construídos por
Piglia e vi na trama uma grande
história de amor", conta.
Os amantes são Angel (Eduardo
Noriega) e Nene (Leonardo Sbaraglia), parceiros também no crime. A história (real) reconstitui a
mais audaciosa (e malograda)
ação da dupla, engajada no assalto a um carro-forte na Argentina.
Com Angel ferido e dois policiais mortos na ação, os ladrões e
dois de seus comparsas decidem
esconder-se em Montevidéu, no
Uruguai, de onde pretendiam fugir para o Brasil, na tentativa de
escapar definitivamente à fúria
vingativa da polícia argentina.
No livro, as ações exteriores e o
burburinho interno dos personagens são relatados em múltiplas
vozes narrativas. A Piñeyro pareceu que o recurso, embora fosse
"muito atrativo", não resultaria
adequado ao cinema.
Depois de um ano e meio trabalhando no roteiro, o diretor decidiu arriscar-se "num caminho da
objetivação à subjetivação", que é
percorrido no filme em três capítulos bem demarcados, nos quais
se deriva de um narrador onisciente para o mais íntimo ponto
de vista dos personagens.
"Mudar a voz do relato em cada
capítulo é uma aposta que você
sabe porque faz, mas não sabe
quantos vão conseguir entendê-la
ou pensarão que foi um erro."
Contudo não foi em razão de
suas escolhas formais que o cineasta enfrentou reprimendas ao
filme em seu país.
Incomodou ao departamento
de classificação portenho o tema e
também sua abordagem. O título
de Piñeyro foi vetado para exibições na TV e proibido nos cinemas para menores de 18 anos,
mesmo acompanhados dos pais.
Usualmente, a mais rigorosa classificação na Argentina interdita
uma obra a menores de 16, desde
que desacompanhados dos pais.
A justificativa para a decisão em
relação a "Plata Quemada" foi a
de que o filme "não tem um olhar
condenatório sobre os fatos que
narra e, particularmente, sobre a
relação homossexual dos protagonistas", relata Piñeyro.
Ao tomar conhecimento dessa
sentença, o cineasta disse que
processaria seus responsáveis, pelo evidente caráter discriminatório, prática que fere a Constituição argentina. "Desde então, eles
renovaram a proibição duas vezes, mas agora sem justificativas",
afirma o diretor, que recorre pela
terceira vez.
A reação oficial ao filme não
apenas espantou, como surpreendeu o cineasta. "Esse episódio me
revelou que há bolsões muito obscurantistas em nossa sociedade.
Em minha enorme ingenuidade,
acreditava que isso não existisse
mais", diz.
À parte as restrições na Argentina, Piñeyro está satisfeito com a
carreira de "Plata Quemada" no
exterior e sua boa acolhida, sobretudo na Espanha, co-produtora
da fita. É também da Espanha que
o diretor argentino "importou" o
ator Eduardo Noriega, a quem admira desde "Thesis" e "Abre los
Ojos", os dois primeiros longas
do hoje incensado Alejandro
Amenábar ("Os Outros") .
"Noriega tem uma simultânea
dureza e fragilidade que me parecia característica-chave para o
personagem", diz o diretor. O
produtor espanhol tentou demover Piñeyro da idéia do convite e
disse que o ator jamais aceitaria
papel semelhante. O cineasta decidiu fazer pessoalmente a proposta e, antes mesmo de formulá-la, ouviu de Noriega uma entusiasmante reação. "Ele me disse
que "Cenizas del Paraíso" era seu
filme favorito", afirma.
Do elenco de "Cenizas del Paraíso" -o longa que Piñeyro havia
ido apresentar no Festival de Havana, em 97, quando "estacionou" no aeroporto de Caracas-,
o cineasta manteve em "Plata
Quemada" Sbaraglia, seu ator
mais constante, e Leticia Bredice,
conhecida no Brasil por "Nove
Rainhas". Bredice interpreta uma
prostituta argentina que vive no
Uruguai e se envolve com Nene.
Os atores ensaiaram durante
três meses e filmaram ao longo de
outros três. O filme, que custou
US$ 3,2 milhões, chegou a ter a
produção suspensa, por problemas de financiamento.
Foi quando os produtores propuseram a Piñeyro rodá-lo na
fronteira entre Tijuana (México) e
Texas (Estados Unidos).
"Pensei durante alguns dias e
respondi que definitivamente
não. Ou faria "Plata Quemada" na
Argentina e no Uruguai ou não o
faria. O filme, para mim, tinha esse gosto de tango, de jazz, do rio
da Prata, a tristeza das ruas de
Montevidéu...", diz.
Piñeyro diz que não carrega a
deliberada preocupação de dotar
seus filmes de uma identidade nacional, mas não abre mão "do sabor local, indispensável à história
dos personagens".
"Neste filme, a homofobia interna dos personagens tem muito a
ver com o rio da Prata. Seguramente isso existe em todas as outras partes do mundo e foi tanto
mais intenso nos anos 60. Mas há
expressões diferentes. Eu queria
captar uma impressão relativa a
Buenos Aires e Montevidéu."
Em tempo: a classificação no
Brasil também indica "Plata Quemada" para maiores de 18 anos.
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