São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

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MÚSICA

Aos 80 anos, sambista registra, pela primeira vez com sua interpretação, algumas das composições que criou

Guilherme de Brito dá voz às suas canções

ISRAEL DO VALE
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

O último elo de um certo samba triste rende agora seu tributo a si mesmo. Remanescente da geração de ouro dos anos 50 (que tem em seus maiores pares Cartola e Nelson Cavaquinho), Guilherme de Brito estampa no semblante o sorriso sereno da volta por cima, enquanto prepara o segundo disco em pouco mais de dois anos.
A duas semanas dos 81 anos, o grande parceiro de Nelson Cavaquinho em standards como "A Flor e o Espinho" dedica-se, desde a semana passada, ao registro, pela primeira vez em sua voz, de parte do repertório que o conduziu ao panteão da MPB. "São músicas que todo mundo sabe que são minhas, mas eu mesmo nunca gravei", explica.
O homem esguio que entra na sala a passos curtos ou que se ergue com alguma dificuldade da poltrona insinua uma fragilidade que a voz encobre, quando canta. O tom baixo da conversa é o avesso do som grave ao microfone.
Guilherme ouve o resultado da primeira tentativa da tarde, para "Folhas Secas", com base instrumental do Trio Madeira Brasil. Termina de olhos marejados. (Ainda neste dia, poria a voz preliminar em "Pranto de Poeta", outro dos clássicos da parceria com Nelson Cavaquinho, em que fará dueto com Beth Carvalho.)
"Vocês emocionaram o "seu" Guilherme", diz, aos instrumentistas, o cantor, compositor e ora produtor Moacyr Luz, o homem que o trouxe de volta aos holofotes em 2000 para a gravação de "Samba Guardado", com aval da gravadora Lua Discos.

Retomada
Graças a esta volta, pôde assegurar algum conforto a essa altura da vida. "Antes eu morava no quarto andar de um prédio sem elevador. Com o disco, pude comprar outro mais confortável", conta, feliz, o ex-mecânico de máquinas de calcular, que contabiliza entre as maiores demonstrações de reconhecimento as duas vezes em que esteve no Japão para shows e para expor seus quadros, ofício paralelo desde os 24 anos.
Acompanhado de dona Nena, sua mulher "há mais de 60 anos", a quem conquistou com um soneto que ainda recita, o sambista nascido em Vila Isabel sustenta com elegância a postura do poeta-fingidor de Fernando Pessoa.
Que dores teria experimentado para cunhar os versos de "A Flor e o Espinho", por exemplo, tão lembrados entre o que há de mais arrebatador na música popular brasileira? "Me inspirei numa atriz que costumava encontrar numa leiteria na praçaTiradentes", lembra. "Ela entrava sempre às gargalhadas, para chamar atenção." Nada de cotovelos doloridos, como se poderia supor.

Vida nos botequins
A preocupação com a voz ou a saúde é tratada com ironia. "Minha médica é a Nena", diz, achando graça. "Ela me receita de orelhada e eu tomo." A vida nos botequins, onde compôs quase tudo com Nelson, e o cigarro inseparável não lhe trouxeram reveses perceptíveis.
"Comecei a fumar com cinco anos, apanhando guimba de cigarro pelas ruas de Vila Isabel", conta o conterrâneo de bairro de Noel e de Martinho, que bandeou para as fileiras da Mangueira -ambiente de seu "Pranto de Poeta" ("Em Mangueira, quando morre um poeta todos choram/ Vivo tranquilo em Mangueira porque/ Sei que alguém há de chorar quando eu morrer").
Tão evocada, a morte não lhe assusta. "Passei a vida tomando as piores bebidas, porque não tinha dinheiro, mas não tenho nada, não sinto nada", conta o ex-frequentador assíduo do Cabaré dos Bandidos, na praça Tiradentes, onde cansou de pagar a Nelson Cavaquinho as "barrigudas", como ambos chamavam as cervejas pretas, preferidas do parceiro. "Sou um sujeito privilegiado em relação à morte", constata.
De tempos em tempos, diz, até puxa conversa com ela. "Tu não vem me buscar?", provoca. Não que queira ir-se, justo agora que lhe entregaram o sofá-cama dos sonhos, onde pode se esparramar depois do copo de vinho do almoço para o cochilo da tarde. "Com 81 anos, estou na chamada já, sou a bola da vez", ironiza. "Estou esperando tranquilamente, sem fazer mal a ninguém", diz. "Mas acho que não me querem por lá."

O jornalista Israel do Vale viajou a convite da gravadora Lua Discos


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