|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Sentimentos mais ou menos natalinos
É Natal: espera-se que a
gente se abarrote, festeje em
família e, naturalmente, compre e
ofereça presentes. Também é esperado que sejamos generosos. A
onda sazonal de bons sentimentos pode parecer hipócrita: um
momento anual de altruísmo para resgatar o esquecimento do
resto do tempo. Tanto faz, melhor
no Natal do que nunca.
Mas cuidado: para o ideal da
generosidade natalina, distribuir
panetones, por exemplo, é ótimo,
mas não é suficiente. Confira o repertório das histórias de Natal: o
espírito desta época do ano supõe
que a gente enxergue os outros,
ou seja, reconheça que, antes de
serem necessitados, eles são nossos semelhantes.
No Natal ideal, não basta jogar
dinheiro pelo vidro do carro entreaberto, olhando para a frente.
No Natal ideal, quem tenta chamar a nossa atenção, do outro lado do insulfilme, deve nos aparecer como um dos nossos.
Em princípio, reconhecer que
todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam
suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um
pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade
comum de todos, não obstante a
diversidade.
Esse pacto nos leva a calçar um
pouco os sapatos do outro, e a
compaixão evita que os únicos árbitros de nossa vida social sejam o
rigor da lei ou a violência. Se o vizinho abaixa seu som antes das
22h, é porque, embora não sejamos convidados à sua festa, ele reconhece que somos tão humanos
quanto ele; ou seja, ele "sabe" o
que significa estar triste, cansado
ou mesmo, simplesmente, a fim
de ouvir uma música diferente da
que está berrando pelo seu alto-falante naquele dia.
Almoço quase sempre na rua.
Com freqüência, leio e escrevo numa mesa de bar, na calçada. Há
os engraxates que me propõem
seus serviços e, como eu recuso,
pedem um pão de queijo; há o
sem-teto da esquina que quer
comprar cigarros; há aqueles que
chegam com longas e confusas
histórias de ônibus para voltar
para o Norte ou de remédios para
a mãe doente. Que eu possa ou
não oferecer ajuda naquele dia,
que acredite ou não na história
que me é contada, de qualquer
forma, escuto, olho, troco palavras. Nenhum mérito nisso; não é
uma decisão moral, apenas o efeito de minha voracidade: não quero perder nada da variedade da
vida. Gosto das pessoas, porque
sempre me reconheço (ao menos
em parte) na diversidade dos destinos. Nisso, sou apenas, banalmente, moderno.
Você poderia pensar que essa
coluna é uma exortação natalina
a enxergar os miseráveis ao redor
de nós. Digo, enxergá-los nos encontros concretos, em que a pobreza e o desamparo têm rosto e
revelam uma humanidade parecida com a nossa.
Agüente mais um pouco, pois
não se trata exatamente disso.
No sábado passado, à noite,
sentei-me a uma mesa na calçada
de uma sorveteria paulistana. No
meio de meu sorvete, recebi um
telefonema inesperado e triste; alguém, de muito longe, me trazia
notícias difíceis. Eu escutava com
os ombros para a frente, como um
boxeador fechando a guarda. Durante essa conversa tensa, percebi
que alguém parava na minha
frente e ouvi uma voz feminina:
"Moooçô, me dá um trocado?".
Estranhei; parecia-me impossível
que minha interlocutora não percebesse meu estado. Continuei na
minha. De novo: "Moooçô, me dá
um trocado?". Levantei o rosto:
era uma jovem mulher com uma
criança no colo. Ela encontrou
meu olhar, mas não me viu. E, na
lengalenga mecânica de quem
acha chato ter que repetir, insistiu: "Moooçô, o trocado?".
Não sei nem quero saber se sua
necessidade do momento era ou
não mais importante do que o desamparo em que me deixava minha conversa telefônica. De toda
maneira, era intolerável constatar que ela não me enxergava. Os
sinais de meu estado de espírito
não a atingiam. Para ela, eu era
tão abstrato quanto são abstratos
os pedintes no farol para os motoristas que os ignoram e os afastam com um gesto, como se fossem moscas.
O bairro Cinco, em que eu morava nos anos 70, em Paris, era o
xodó dos moradores de rua por
causa da concentração de restaurantes baratos para uma clientela
"progressista". Quando saía de
casa, sempre havia alguém para
pedir um franco. As palavras que
me eram endereçadas, mesmo
que fossem proferidas nas brumas
do álcool, afirmavam primeiro
nossa humanidade comum. Caso
eu estivesse de cara fechada, diziam assim: "Quelque chose qui
va pas, mon vieux? O que foi, algo
que não está dando certo?".
As diferenças eram extremas.
Não era raro que os moradores de
rua do bairro Cinco comessem ração para gato ou para cachorro.
Mas aquela pequena troca discursiva afirmava que, apesar das
diferenças, a gente estava num
barco comum. Eles não renunciavam à sua humanidade, porque
me declaravam que reconheciam
a minha.
Ora, algo em nosso tecido social
deve estar mais doente do que
imaginamos ou do que eu imagino. Pois parece que, nos dois extremos das diferenças sociais, se
manifesta uma mesma capacidade de não enxergar a humanidade do outro.
Sem o amparo do sentimento de
uma humanidade comum, não
há convivência possível entre diferenças. Apenas a promessa de
um extermínio recíproco.
Sem ironia, feliz Natal a todos.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Mundo gourmet: Allegra junta pizza e massa como nas velhas cantinas Próximo Texto: Panorâmica - Música 1: MinC se reúne com músicos de São Paulo Índice
|