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CONTARDO CALLIGARIS
A terapia da faca e do superbonder
Há crianças que nascem com
uma malformação dos órgãos sexuais suficiente para que surja
uma incerteza quanto ao sexo do
recém-nascido.
A partir dos anos 50, uma equipe da Johns Hopkins University se
especializou em resolver essas dificuldades. Eles eram capitaneados
por um psicólogo, John Money, o
qual estava convencido de que a
chamada identidade de gênero (o
fato de a gente se sentir homem ou
mulher) era um efeito da educação recebida. Ou seja, segundo ele,
pouco importavam os hormônios:
as crianças viveriam como machos ou fêmeas por serem criadas
brincando -quer seja de bonecas
e panelas, quer seja de metralhadoras e caminhões.
Portanto, concluía Money, nos
casos em que o sexo anatômico
não aparece claramente definido,
basta optar firme para o sexo
mais fácil de ser reconstruído cirurgicamente. Em seguida, resta
tratar a criança como menino ou
menina, de acordo com o resultado da operação. A faca escolheria
o sexo, e o sentimento de identidade iria se adaptar à nova realidade anatômica.
Os casos tratados pela equipe de
Baltimore eram todos de crianças
que apresentavam órgãos sexuais
confusos e, portanto, também deviam sofrer de algum descompasso hormonal. Faltava um caso
que demonstrasse a doutrina sem
equívocos. O destino ofereceu a
Money essa chance quando o pequeno Bruce Reimer caiu em suas
mãos.
A história desse mártir do obscurantismo acaba de ser contada
de maneira magistral por John
Colapinto, no livro "As Nature
Made Him" (HarperCollins), que
se lê num sopro de indignação.
Em 1966, Bruce e Brian Reimer,
irmãos gêmeos, aos seis meses, foram submetidos à circuncisão. A
de Bruce não deu certo, e o pênis
da criança foi irreparavelmente
queimado. Na época, as perspectivas de cirurgia reconstrutora
eram incertas. Os pais encontraram Money e o grupo de Baltimore, para quem Bruce era o caso pedido a Deus: não um hermafrodita, mas um menino normal, com
cargas hormonais normais
-apenas amputado. Com ele, seria possível mostrar sem ambiguidade que o gênero é só uma questão de educação. Money propôs
então transformar Bruce em menina. A criança foi, portanto, castrada (ablação de testículos e escroto), rebatizada como Brenda e
criada como menina. Em perspectiva: outras cirurgias para criar
uma vagina funcional e hormônios na puberdade, para desenvolver seios e aparência feminina.
Durante anos, Money permaneceu cego ao sofrimento de Bruce/
Brenda -apresentou o caso como um completo sucesso. A fraude foi revelada só em 1997. E hoje
Reimer, que decidiu se chamar
David e voltou a ser o homem que
de fato ele nunca deixou de ser,
conta seu calvário.
Lições urgentes de serem ouvidas:
1. Money defendia a idéia de
que a educação pode tudo e a biologia não apita nada. Essa idéia
era progressista: foi nela que o
movimento feminista se apoiou
para mostrar que o lugar subalterno da mulher na sociedade não
é uma necessidade biológica. Hoje, uma parte do movimento gay
acha progressista afirmar que as
orientações sexuais são decididas
biologicamente. Moral: as ideologias mudam. Portanto, é bom deixar a ideologia na gaveta, sobretudo quando ela comanda uma
faca.
2. Os defensores da primazia da
educação sobre a biologia castraram Bruce Reimer. Os defensores
da primazia oposta já lobotomizaram cérebros e ainda vão cortando. Não está na hora de aceitar que a verdade esteja no meio?
Ou seja, que somos uma complexa e indissociável mistura de carne, palavras e imagens, em que
não vem ao caso decidir qual dos
três pode mais? Um pouco de humildade não faria mal a ninguém.
3. Psiquiatras e psicólogos pensaram que era possível criar Bruce
como se ele tivesse nascido menina. Eles acreditaram que os pais
nada transmitiriam de sua raiva,
de sua frustração ou mesmo de
seu sentimento de culpa. Acharam que seria possível organizar a
vida de uma criança ao redor de
uma mentira sem que isso transparecesse. É só dar as instruções
certas para o comportamento dos
familiares. Mas quem lhes deu
um diploma?
4. Paul McHugh, atual chefe do
departamento de psiquiatria de
Johns Hopkins, compara as práticas de Money com a lobotomia e
encoraja os psiquiatras a voltar a
escutar seus pacientes, abandonando as práticas radicais. Ainda
hoje, cirurgias irreversíveis são
promovidas, por exemplo, na cura
de neuroses obsessivas. Antes de
confiar os pacientes à faca, cortando cabeças em cima ou em
baixo, é bom refletir sobre a história de David Reimer.
5. A pressa em cortar, de Money
e de outros, pode parecer um desejo de consertar as coisas. Algo não
está certo? Eles querem resolver
logo, antes que comece a doer.
Chegam de faca e superbonder.
Foi esta a idéia com Bruce Reimer: conserta logo antes que ele se
dê conta. Não lhe deixa o tempo
de urrar à Lua pelo horror do qual
foi vítima. Será que é generosidade? Ou então covardia de terapeutas que não querem ouvir a
dor de seus clientes? Na pressa de
consertar, nós acabamos de ver
para o que serve realmente a faca.
O superbonder serve para colar a
boca do paciente.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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