São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 2001

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ARTIGO

Pérez Gay forja romance como ato de liberdade

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chama a atenção a presença germânica na literatura mexicana. Dois novos autores, Jorge Volpi (Prêmio Biblioteca Breve por "En Busca de Klingsor") e Ignacio Padilla (Prêmio Primavera por "Amphytrion") centram seus romances em temas germânicos.
Minha geração, a da metade do século no México, se formou lendo Joseph Roth, Thomas Mann, Robert Musil, Heimito von Doderer e Hermann Broch.
E a geração que poderíamos chamar de intermediária não apenas lê, mas também fala o alemão. Refiro-me a autores como Juan Villoro, Federico Reyes Heroles e José Maria Pérez Gay.
Pérez Gay acaba de publicar um romance magnífico intitulado "Tu Nombre en el Silencio" (Cal e Arena, México). A obra rompe com pruridos formais que procuram reduzir o universo narrativo a um mínimo que muitas vezes obedece às leis do mercado: livros que podem ser lidos no trem.
"Tu Nombre en el Silencio" é o contrário disso -um romance extenso, expansivo, de quase 600 páginas, que exige atenção e entrega absolutas. Mas a extensão é apenas suficiente para abarcar sua riqueza temática e de gêneros.
É um romance libertador do gênero. Romance, conto, reportagem, poema, ensaio: Broch integra todos os gêneros no que se chamou de narrativa polifônica. Pérez Gay, grande leitor de Broch, assume livremente essa liberdade (mantenha-se a redundância, que é necessária e ilustrativa).
Participa de múltiplos gêneros, começando por um dos mais tradicionais: o "bildungsroman", ou romance da educação sentimental. Ernesto Cardona é um jovem estudante mexicano na turbulenta Berlim da Guerra Fria. Na cidade dividida, compartilha sua formação política, intelectual e sentimental com dois companheiros latino-americanos, o brasileiro Carneiro e o colombiano Vélez.
Por meio dos três amigos, o autor traça o pano de fundo da América Latina dos anos 60. O reinado autoritário do PRI no México culmina no massacre de Tlatelolco e no suicídio do sistema, lento, mas fatal. Na Colômbia, o sacrifício pessoal, desde o de Jorge Eliecer Gaitán até o do padre Camilo Torres, não exorciza cem anos de solidão violenta.
Paralelamente às histórias políticas latino-americanas que Cardona, Carneiro e Vélez carregam com eles, a Europa se coloca, mais uma vez, com o orgulho de sempre, como um centro do acontecer histórico ao qual os latino-americanos têm acesso não pelo mérito intrínseco de sua história, mas apenas por sua genuflexão diante da história européia.
Apesar da globalização da revolta de 1968, os europeus se vêem como "sujeitos" e aos outros como "objetos". A América Latina é um subcontinente, e a Europa radical nos perdoa e nos inclui na história apenas quando nos ajoelhamos diante de Marx. Somos os robin hoods sensíveis da revolução.
Apesar disso, os jovens rebeldes latino-americanos têm uma vantagem sobre os europeus. Eles recordam o Marx dos "Manuscritos", capaz de dizer que a relação humana é de homem a homem: só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança.
É isso que Cardona, Vélez e Carneiro descobrem no movimento revolucionário alemão e em seu porta-voz, Rudi Dutchke, de quem Pérez Gay pinta um retrato inesquecível, reflexo da relação pessoal entre ambos.
Além de Broch e da polifonia narrativa, Pérez Gay tem um grande modelo para a parte política de seu romance. Alfred Doblin, o poeta sombrio de "Berlin Alexanderplatz".
Uma guerra perdida, uma revolução traída, uma nação humilhada e uma ressurreição demoníaca. Esse é o pano de fundo do romance de Pérez Gay, que nos situa habilmente nas consequências contemporâneas do drama alemão (a revolta dos filhos de burguesia contra seus pais), apenas para nos conduzir até o âmago do terrível passado alemão: a adesão comprovada, mas para sempre inexplicável, da maioria do povo alemão ao projeto político mais diabólico da história, o nazismo.
A razão fundamental do êxito dos nazistas em 1932 é dada por Wilhelm Reich em seu livro lúcido e assustador "Psicologia de Massas do Fascismo": em vez de se unirem contra Hitler, as esquerdas brigaram entre elas.
Sobretudo, porém, a esquerda se limitou a fazer a crítica socioeconômica, enquanto Hitler apoderava-se das superestruturas culturais, relegadas ao segundo plano pela esquerda.
Esse "rapto da cultura" cometido por Hitler constitui o contraponto da "contracultura" anarcocomunista de Dutchke. Pérez Gay estabelece entre ambos a ponte do amor, como se Marx encarnasse novamente em sua esquecida exigência da relação humana. O nível autobiográfico do livro (ele é Cardona) se desloca para a relação com Erika e, desta, para outro cerne do romance: o passado alemão.
Pérez Gay escolheu um Virgílio de saias para descer até o inferno nazista. Ida Paveling, personagem mais inesquecível do livro, mãe de Erika, é sobrevivente que ousa descrever os nazistas como "executores de nossos desejos mais profundos". "Os políticos", diz Ida, "são os donos de nossas vidas, porque alimentam o ódio que dorme em cada um de nós."
Essa visão tenebrosa admite réplica (política como bem comum), mas também testemunho (política como mal comum).
Essa encarnação do mal absoluto de nosso tempo é exemplar e fatal. De tempos em tempos, encarna em qualquer latitude, nas torturas dos militares argentinos e chilenos. O horror torna-se banal na crueldade rotineira, mas também nas torturas atrozes cometidas por Astiz e Cavallo e no sadismo de Pinochet.
No México, paralelamente, Zapata é assassinado por aqueles que hoje o glorificam, Toral acaba sendo o autor da "No Reelección" e as rebeliões indígenas são os fatos históricos que vão comentando o texto da modernidade mexicana, nacionalista e liberal. Lúcido, Pérez Gay situa o início do 68 mexicano nas humilhações contra o reitor Ignacio Chávez pelo presidente Díaz Ordaz.
Díaz Ordaz chamou Herbert Marcuse de "o filósofo da destruição". Quão construtivo e atual se revela esse filósofo quando nos pede para encontrarmos o reino da liberdade no da necessidade, ou seja, no trabalho. A liberdade do trabalho é o grande tema que supera as ilusões perdidas dos 60.
O livro de Pérez Gay não evita tratar dessas contradições. Ele nos obriga a encarar de frente todas as nossas ilusões perdidas, mas não nega a ninguém as maneiras de sonhar. Irmão mexicano da grande tradição alemã de Doblin e de Broch, confere a sua romance a liberdade de ser tudo: biografia do autor, confissão dos filhos do século, memórias pessoais, campo de debate público, reflexão filosófica, arena política, romance de amor, poema da intimidade. É a romance como ato de liberdade.


Tradução Clara Allain



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