São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"AO VIVO DO CORREDOR DA MORTE"

Obra expõe sistema prisional dos EUA

RODRIGO UCHÔA
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
O policial Daniel Faulkner foi morto na Filadélfia, a tiros, em dezembro de 1981; Mumia Abu-Jamal foi condenado à morte pelo assassinato de Faulkner menos de um ano depois, em julho de 1982.
Mesmo levando-se em conta apenas os fatos, o caso não é simples como pode parecer à primeira vista. Há dezenas de versões e dúvidas levantadas por organizações de defesa dos direitos civis, que acusam a Justiça de ter julgado o caso de forma política e de a prisão em flagrante ter sido uma armadilha de policiais.
A versão dos amigos de Mumia: ele passava pela rua, dirigindo um táxi, quando viu seu próprio irmão sendo surrado por policiais. Desceu do carro, foi recebido com brutalidade, levou um tiro e só acordou no hospital. Somente lá teria descoberto a acusação de ter atirado antes, apesar de ter um revólver calibre 38 e a bala que matou Faulkner ser de calibre 44.
Testemunhas teriam sido ameaçadas pelos policiais que investigaram o caso e teriam até "esquecido" de mencionar um outro homem que teria fugido do local.
O circo estava armado. Condenado à morte, ficaria calado um negro que falava da brutalidade da polícia, que expunha demais o gueto em que vivia, que tinha idéias que iam contra a corrente. Nada mais fácil, nada mais lógico.
Mumia aderiu ao Panteras Negras (grupo radical de defesa dos direitos dos afro-americanos) em 67, aos 15 anos. Como radialista, nos 70, passou a denunciar o que para ele era "o sistema policial de repressão americano contra as minorias". Segundo as pessoas que conviveram com ele, foi despedido por ser "incisivo demais".
Os Panteras ficaram famosos por pregar uma forma violenta de afirmação social para os negros. Não queriam que o "bondoso" branco desse nada, eles iriam tomar a dignidade que era deles. Tinham um pecado original quase imperdoável para o americano médio, o feroz anticapitalismo.
Já os amigos do policial morto afirmam que isso tudo é lero-lero, que o homem é um assassino que quer se passar por vítima da sociedade. Houve julgamento, júri, provas, advogado de defesa e promotoria e apelações.
A versão: Mumia teria visto o irmão sendo preso, reagiu com violência e atirou no policial. Essa história de ativismo negro é cortina de fumaça. O sistema, afinal, é igual para todos.
O que mexe com paixões e retira a razoabilidade da discussão é que são expostos dois dos maiores tabus da sociedade americana: a aparente "imparcialidade" da sua Justiça, incluindo aí o sistema prisional, e a rachadura social que insiste em dividi-los etnicamente.
A descrição do sistema carcerário dos EUA, que Mumia faz publicamente, enquanto espera a execução, pode levar um incauto a achar que o Carandiru é uma colônia de férias para aposentados.
O sistema prisional que ele disseca é visto a partir do corredor da morte. Ali estão os homens e mulheres que não vão participar de programas de reabilitação, ali estão apenas para sobreviver enquanto o espetáculo é preparado.
É assim para brancos, latinos e negros. Só que os negros formam uma maioria acachapante, ao se levar em conta que são minoria na população. O Estado passa a agir como uma ferramenta bem azeitada de desumanização.
Esse é o tema de "Ao Vivo do Corredor da Morte". São pequenas histórias do dia-a-dia de personagens dos mais excluídos da sociedade americana, os mortos-vivos. O livro talvez seja melhor como manifesto do que como literatura, mas é difícil não se envolver com as histórias que vão se passando e com as reflexões de Mumia sobre a situação.
Ele é claro, político e tendencioso. Isso não é ruim, expõe uma versão crua do sistema. Se o lado bom é o lado manifesto, pelo menos é esclarecedor quanto à estupidez da pena de morte.
Não poderia chegar ao Brasil num momento mais propício. É uma coincidência, mas parece combinado. Mumia não passa os olhos pela organização de grupos intramuros, mas expõe as entranhas da organização do sistema. No final das contas, é isso que precisa ser discutido.


Ao Vivo do Corredor da Morte
Live from Death Row   
Autor: Mumia Abu-Jamal
Tradutor: Edison Cardone
Editora: Conrad
Quanto: R$ 27 (208 págs.)




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