|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FORMA&ESPAÇO
Rio e marginal Tietê, terra de quem?
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
A peça "BR-3", do Teatro da
Vertigem, dirigida por Antônio Araújo, tem implicações
que extrapolam em muito a cena
teatral da cidade, e é sobre isso
que falaremos aqui.
Ao tomar o rio Tietê como palco
da encenação, o espetáculo (em
cartaz até junho; informações pelo tel. 0/xx/11/3241-3132) dá novo
significado àquela paisagem, lançando luz sobre a sua qualidade
de "lugar" e, em registro ampliado, sobre a história de constituição de São Paulo.
Há mais de dez anos que se tornou moda falar em "não-lugares"
como os espaços mais representativos da "supermodernidade" em
que vivemos. O Tietê e suas marginais apresentam os sintomas
clássicos desses lugares negativos:
locais de passagem, com ocupações provisórias, e cuja desertificação apaga qualquer vínculo
com a história e com as comunidades humanas. Por isso é que,
submergindo nessa paisagem, vivemos, na peça, uma experiência
de radical desterritorialização.
Por outro lado, ao romper a barreira de asco que nos separa visceralmente daquele "não-lugar"
abjeto, navegando por ele, penetramos na espessura de sua dimensão palpável.
A rica inversão da experiência
cotidiana que aí se dá me lembra
o relato de Julio Cortázar e Carol
Dunlop em "Os Autonautas da
Cosmopista - Uma Viagem Atemporal Paris-Marselha" (lançado
no Brasil pela editora Brasiliense), distendendo um trajeto que
normalmente dura sete horas em
largos 33 dias de viagem estacionária, em que os "cronistas-tripulantes" se detêm em todas as 65
paradas de descanso à margem
da autopista.
Assim, vivendo cotidianamente
na autopista, eles transpõem a
franja abissal que há entre a esterilidade daquela "terra de ninguém" e a invisibilidade daquilo
que é, também, uma "terra de todos", porque atravessada diariamente por multidões.
Pouco a pouco, eles vão se desligando do automatismo inerente
àquele percurso turistas e comerciantes com olhos vidrados na autopista, bocas com gosto de sanduíches mal mastigados, e encontrando a variedade dentro da
monotonia.
Festival de faróis
Não se trata, é claro, de uma crítica à dimensão mecânica e funcional desses espaços, mas ao embotamento da experiência que a
acompanha. Particularmente reveladora, é a descrição da movimentada "cidade" de caminhões
estacionados durante a noite,
com seu festival de faróis, buzinas, guinchos estridentes de freadas e grande trânsito de pessoas
entre os carros: "Uma pequena cidade efêmera, cambiante, que
existirá apenas uma vez, para ser
substituída por outra diferente no
dia seguinte".
Assim, o que se destaca nessas
imersões no Tietê e na autopista
francesa, é menos a coragem ou o
aspecto pitoresco das experiências
do que a inteligência contundente
da ação: mirar o olho da medusa,
submergindo naquilo que há de
mais alienante na experiência
diária: os "não-lugares".
No nosso caso, navegar pelo rio
Tietê é refazer mentalmente a arqueologia da cidade, que cresceu
ocupando as várzeas dos rios com
vias expressas de tráfego automobilístico e ferroviário, que fazem
delas importantes eixos estruturadores da metrópole, por um lado, mas espaços sem nenhuma
qualidade humana, por outro.
Não se trata, aqui, de procurar
uma poesia oculta do Tietê, mas
de estar aberto para a "reterritorialização" cognitiva que experiências como essa permitem: ver
São Paulo com os olhos da mente.
Texto Anterior: Sade ganha livros e ciclo de cinema Próximo Texto: Panorâmica - Cinema 1: Morre a atriz italiana Alida Valli, 84 Índice
|