São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Rio e marginal Tietê, terra de quem?

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

A peça "BR-3", do Teatro da Vertigem, dirigida por Antônio Araújo, tem implicações que extrapolam em muito a cena teatral da cidade, e é sobre isso que falaremos aqui.
Ao tomar o rio Tietê como palco da encenação, o espetáculo (em cartaz até junho; informações pelo tel. 0/xx/11/3241-3132) dá novo significado àquela paisagem, lançando luz sobre a sua qualidade de "lugar" e, em registro ampliado, sobre a história de constituição de São Paulo.
Há mais de dez anos que se tornou moda falar em "não-lugares" como os espaços mais representativos da "supermodernidade" em que vivemos. O Tietê e suas marginais apresentam os sintomas clássicos desses lugares negativos: locais de passagem, com ocupações provisórias, e cuja desertificação apaga qualquer vínculo com a história e com as comunidades humanas. Por isso é que, submergindo nessa paisagem, vivemos, na peça, uma experiência de radical desterritorialização. Por outro lado, ao romper a barreira de asco que nos separa visceralmente daquele "não-lugar" abjeto, navegando por ele, penetramos na espessura de sua dimensão palpável.
A rica inversão da experiência cotidiana que aí se dá me lembra o relato de Julio Cortázar e Carol Dunlop em "Os Autonautas da Cosmopista - Uma Viagem Atemporal Paris-Marselha" (lançado no Brasil pela editora Brasiliense), distendendo um trajeto que normalmente dura sete horas em largos 33 dias de viagem estacionária, em que os "cronistas-tripulantes" se detêm em todas as 65 paradas de descanso à margem da autopista.
Assim, vivendo cotidianamente na autopista, eles transpõem a franja abissal que há entre a esterilidade daquela "terra de ninguém" e a invisibilidade daquilo que é, também, uma "terra de todos", porque atravessada diariamente por multidões.
Pouco a pouco, eles vão se desligando do automatismo inerente àquele percurso turistas e comerciantes com olhos vidrados na autopista, bocas com gosto de sanduíches mal mastigados, e encontrando a variedade dentro da monotonia.

Festival de faróis
Não se trata, é claro, de uma crítica à dimensão mecânica e funcional desses espaços, mas ao embotamento da experiência que a acompanha. Particularmente reveladora, é a descrição da movimentada "cidade" de caminhões estacionados durante a noite, com seu festival de faróis, buzinas, guinchos estridentes de freadas e grande trânsito de pessoas entre os carros: "Uma pequena cidade efêmera, cambiante, que existirá apenas uma vez, para ser substituída por outra diferente no dia seguinte".
Assim, o que se destaca nessas imersões no Tietê e na autopista francesa, é menos a coragem ou o aspecto pitoresco das experiências do que a inteligência contundente da ação: mirar o olho da medusa, submergindo naquilo que há de mais alienante na experiência diária: os "não-lugares".
No nosso caso, navegar pelo rio Tietê é refazer mentalmente a arqueologia da cidade, que cresceu ocupando as várzeas dos rios com vias expressas de tráfego automobilístico e ferroviário, que fazem delas importantes eixos estruturadores da metrópole, por um lado, mas espaços sem nenhuma qualidade humana, por outro.
Não se trata, aqui, de procurar uma poesia oculta do Tietê, mas de estar aberto para a "reterritorialização" cognitiva que experiências como essa permitem: ver São Paulo com os olhos da mente.


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