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CECILIA GIANNETTI
Paratempo
Os ciclistas e os imigrantes mandam nas ruas aqui, mas não controlam o tempo, que gosta de parar em praças
O TEMPO foi impedido de ser
conjugado em mim, como
uma nova lei de que ninguém
ouviu falar, mas vigora mesmo assim. Fico desorientada no instante
em que o avião começa a se afastar
do terreno seguro dos problemas sociais transformados em manchetes,
do calor de estufa e da impunidade à
la carte. "Cadê aquela miseriazinha
irremediável que estava aqui?" Seu
afastamento me tira o chão. O ponteiro do relógio pára na hora em que
levanto vôo, cercada pela porta do
banheiro, que será aberta e fechada
sem parar nas 12 horas de vôo, e por
empresários que passam a viagem
exibindo uns pros outros chatíssimas apresentações em Power Point.
Deixamos relógios suspensos e a
troca de fuso nos desarruma -trato
nossa ziquizira da alma no plural
porque agora somos duas desesperadas: eu e a que deixei no Brasil.
Aqui em Berlim, onde vim passar
um mês, a taxista iraniana que me
apanha no aeroporto toca o volante
com unhas compridas, de um tamanho que não cabia no país (e na religião) que abandonou. Perdeu o fuso
original e ganhou o direito de pintar
os cabelos de vermelho. E de me
confessar crer que, no Irã, "as mulheres são tratadas como animais".
Aqui, na "Nova Istambul", o garçom nunca entende o que digo, e eu
não entendo o que ele me pergunta.
O garçom, com quem puxo conversa
na Oranienstrasse, também perdeu
o fuso quando engrossou a população de 2 milhões de imigrantes turcos em Berlim. Fala uma mistura de
turco quebrado e alemão corrompido; fura o teto com olhos verde-escuros; entediado, alisa um avental
impecável, mantém sua religião intocada pelas igrejas berlinenses e integra a maioria que domina sobretudo a região de Kreuzberg.
O tempo que os berlinenses denominam primavera é ainda, até abril,
um frio de tirar os sentidos. Como se
o sopro paralisante que chega da Sibéria ao final de cada ano tivesse se
esquecido de partir. Os ciclistas cortam esse gelo-que-venta, como se
fosse moleza fazê-lo. Os ciclistas e os
imigrantes mandam nas ruas aqui,
mas não controlam o tempo, que
gosta de parar em praças como esta
que o garçom observa. O tempo gosta de parar nos aventais muito brancos, no breu das asas dos corvos e
gralhas, e nos tênis coloridos dos andarilhos que arrancam flores vagabundas nascidas ao pé do que resta
do Muro de Berlim. "O muro é um
estado de espírito permanente, uma
mentalidade que eles não perdem",
lamenta Ufuk, turco, dono do restaurante, que se senta à minha mesa.
O tempo pára simultaneamente
em antigas capitais da Europa, em
coretos e hotéis que se erguem onde,
décadas antes, aconteceram batalhas inúteis, em antigas colônias que
não perdem o espírito vira-lata. O
tempo pára ainda quando um policial achata um camelô com seu cassetete na avenida Rio Branco, numa
fila de banco que estrangula um
quarteirão do centro, no ruído contínuo da engrenagem das calçadas
em todas as cidades do mundo, ele
se perde. Meu relógio avariado indica que o tempo paira quieto acima
desta mesa feito mosca varejeira,
zumbindo para quem consulta o
pulso, o visor do celular, as torres de
uma "platz" qualquer ou da Central.
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