São Paulo, terça-feira, 24 de abril de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Paratempo

Os ciclistas e os imigrantes mandam nas ruas aqui, mas não controlam o tempo, que gosta de parar em praças

O TEMPO foi impedido de ser conjugado em mim, como uma nova lei de que ninguém ouviu falar, mas vigora mesmo assim. Fico desorientada no instante em que o avião começa a se afastar do terreno seguro dos problemas sociais transformados em manchetes, do calor de estufa e da impunidade à la carte. "Cadê aquela miseriazinha irremediável que estava aqui?" Seu afastamento me tira o chão. O ponteiro do relógio pára na hora em que levanto vôo, cercada pela porta do banheiro, que será aberta e fechada sem parar nas 12 horas de vôo, e por empresários que passam a viagem exibindo uns pros outros chatíssimas apresentações em Power Point.
Deixamos relógios suspensos e a troca de fuso nos desarruma -trato nossa ziquizira da alma no plural porque agora somos duas desesperadas: eu e a que deixei no Brasil. Aqui em Berlim, onde vim passar um mês, a taxista iraniana que me apanha no aeroporto toca o volante com unhas compridas, de um tamanho que não cabia no país (e na religião) que abandonou. Perdeu o fuso original e ganhou o direito de pintar os cabelos de vermelho. E de me confessar crer que, no Irã, "as mulheres são tratadas como animais".
Aqui, na "Nova Istambul", o garçom nunca entende o que digo, e eu não entendo o que ele me pergunta. O garçom, com quem puxo conversa na Oranienstrasse, também perdeu o fuso quando engrossou a população de 2 milhões de imigrantes turcos em Berlim. Fala uma mistura de turco quebrado e alemão corrompido; fura o teto com olhos verde-escuros; entediado, alisa um avental impecável, mantém sua religião intocada pelas igrejas berlinenses e integra a maioria que domina sobretudo a região de Kreuzberg.
O tempo que os berlinenses denominam primavera é ainda, até abril, um frio de tirar os sentidos. Como se o sopro paralisante que chega da Sibéria ao final de cada ano tivesse se esquecido de partir. Os ciclistas cortam esse gelo-que-venta, como se fosse moleza fazê-lo. Os ciclistas e os imigrantes mandam nas ruas aqui, mas não controlam o tempo, que gosta de parar em praças como esta que o garçom observa. O tempo gosta de parar nos aventais muito brancos, no breu das asas dos corvos e gralhas, e nos tênis coloridos dos andarilhos que arrancam flores vagabundas nascidas ao pé do que resta do Muro de Berlim. "O muro é um estado de espírito permanente, uma mentalidade que eles não perdem", lamenta Ufuk, turco, dono do restaurante, que se senta à minha mesa.
O tempo pára simultaneamente em antigas capitais da Europa, em coretos e hotéis que se erguem onde, décadas antes, aconteceram batalhas inúteis, em antigas colônias que não perdem o espírito vira-lata. O tempo pára ainda quando um policial achata um camelô com seu cassetete na avenida Rio Branco, numa fila de banco que estrangula um quarteirão do centro, no ruído contínuo da engrenagem das calçadas em todas as cidades do mundo, ele se perde. Meu relógio avariado indica que o tempo paira quieto acima desta mesa feito mosca varejeira, zumbindo para quem consulta o pulso, o visor do celular, as torres de uma "platz" qualquer ou da Central.


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