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Crítica/"Relembrando o que Escrevi"
Em livro, FHC faz limonada da frase "esqueçam o que escrevi"
Coletânea reúne artigos e entrevistas do ex-presidente nos últimos 40 anos
FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA
S
e alguém lhe der um limão, faça uma limonada.
Quem nunca ouviu o ditado? "Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios da Globais", novo livro de Fernando
Henrique Cardoso, é uma ótima limonada.
O limão, todos conhecem, é a
frase "esqueçam o que escrevi",
que FHC insiste nunca ter pronunciado, mas que lhe foi atribuída ainda antes de chegar à
Presidência, em 1994, e nele
grudou como carrapato.
"A maioria dos que gostariam
que eu tivesse querido esquecer o que pensava nunca ouviu
ou leu o que disse ou escrevi.
Este livro permite que quem
esteja interessado em tais julgamentos verifique com mais
acuidade se mudei muito, pouco ou nada, embora a última alternativa me condene a ser um
intelectual propenso ao dogmatismo, o que espero não ser",
escreve o autor na apresentação da obra.
"Relembrando o que Escrevi" recolhe artigos e entrevistas
de FHC publicados na imprensa ao longo das últimas quatro
décadas. A seleção ficou a cargo
do diplomata Miguel Darcy de
Oliveira -assessorado por Danielle Ardaillon, responsável
pelo acervo do Instituo Fernando Henrique Cardoso. O livro está dividido em cinco capítulos temáticos, organizados,
cada um, em ordem cronológica. São eles: "Liberdade e Democracia", "Esquerda e Política", "Sociedade e Estado", "Desenvolvimento e Globalização" e "Esperança e Futuro".
São todos textos de circunstância. Seu interesse, no entanto, não se resume ao aspecto
documental e histórico, que
também existe. "Um pouco do
espírito da antiga banda de música da UDN não faz mal a qualquer oposição. Em certos momentos é proibido gritar. Que
se fale, ao menos. Que se sussurre", escreve FHC em 1972,
auge da ditadura, no jornal
"Opinião". Ele já tinha claro,
àquela altura, contra boa parte
da esquerda, que a luta a ser
travada era pela democracia,
não pelo socialismo.
Mais do que apenas seguir os
passos de um dos maiores sociólogos brasileiros e o único
que chegou -acidentalmente,
ele diz- à Presidência, o livro
nos apresenta um mosaico que
funciona como ponte entre o
legado do intelectual e o horizonte do político.
Dizer que as análises de conjuntura ou as intervenções públicas de FHC resistem ao tempo parece insuficiente. Vista
em retrospectiva, a trajetória
que o livro desenha impressiona pela acuidade, pela coerência, pela capacidade de antevisão, pela maneira com que o autor consegue transitar entre os
fatos e os conceitos, entre a
percepção do momento e a
compreensão estrutural da dinâmica histórica.
Obra acadêmica
Essas são também as características da obra acadêmica que
FHC construiu sobretudo nos
anos 60. Na sua tese de livre-docência, "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico", publicada em 1964,
FHC desmontava a tese do PC,
então hegemônica na esquerda,
segundo a qual a burguesia nacional era aliada da classe operária na luta contra o latifúndio
e o imperialismo. Nossos industriais já eram, na verdade,
"sócios menores" do capital internacional, dizia FHC, desarranjando esquemas da época.
"Há um descompasso entre a
ciência social e a realidade", diz
o autor numa entrevista de
1981 (pág. 65). E talvez não
exista no Brasil intelectual de
peso mais avesso a esse descompasso do que FHC. "Há setores da esquerda brasileira
que continuam vivendo entre
fevereiro e outubro de 1917",
diz ele, em 1977, em entrevista
à "Veja" (pág 155).
Tome-se como antídoto contra essa esquerda fossilizada o
seguinte trecho: "No Brasil,
embora haja a Amazônia e os
bóia-frias, há uma classe média,
que é como se você estivesse
em Paris. Movimento feminista, comunicação visual muito
rápida. Para decifrar o enigma
brasileiro, você tem que juntar
reivindicações que são da classe média com as que são da
classe operária, misturando-as
com ecologia, modernidade
etc" (pág 60). Trata-se de uma
entrevista concedida em 1978.
O que dá uma ideia do valor histórico, mas também da incrível
atualidade deste pequeno livro.
RELEMBRANDO O QUE ESCREVI - DA RECONQUISTA DA DEMOCRACIA AOS DESAFIOS GLOBAIS
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Organização: Miguel Darcy de Oliveira
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 40, em média (196 págs)
Avaliação: bom
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