São Paulo, sábado, 24 de abril de 2010

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Crítica/"Relembrando o que Escrevi"

Em livro, FHC faz limonada da frase "esqueçam o que escrevi"

Coletânea reúne artigos e entrevistas do ex-presidente nos últimos 40 anos

FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA

S e alguém lhe der um limão, faça uma limonada.
Quem nunca ouviu o ditado? "Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios da Globais", novo livro de Fernando Henrique Cardoso, é uma ótima limonada.
O limão, todos conhecem, é a frase "esqueçam o que escrevi", que FHC insiste nunca ter pronunciado, mas que lhe foi atribuída ainda antes de chegar à Presidência, em 1994, e nele grudou como carrapato.
"A maioria dos que gostariam que eu tivesse querido esquecer o que pensava nunca ouviu ou leu o que disse ou escrevi.
Este livro permite que quem esteja interessado em tais julgamentos verifique com mais acuidade se mudei muito, pouco ou nada, embora a última alternativa me condene a ser um intelectual propenso ao dogmatismo, o que espero não ser", escreve o autor na apresentação da obra.
"Relembrando o que Escrevi" recolhe artigos e entrevistas de FHC publicados na imprensa ao longo das últimas quatro décadas. A seleção ficou a cargo do diplomata Miguel Darcy de Oliveira -assessorado por Danielle Ardaillon, responsável pelo acervo do Instituo Fernando Henrique Cardoso. O livro está dividido em cinco capítulos temáticos, organizados, cada um, em ordem cronológica. São eles: "Liberdade e Democracia", "Esquerda e Política", "Sociedade e Estado", "Desenvolvimento e Globalização" e "Esperança e Futuro".
São todos textos de circunstância. Seu interesse, no entanto, não se resume ao aspecto documental e histórico, que também existe. "Um pouco do espírito da antiga banda de música da UDN não faz mal a qualquer oposição. Em certos momentos é proibido gritar. Que se fale, ao menos. Que se sussurre", escreve FHC em 1972, auge da ditadura, no jornal "Opinião". Ele já tinha claro, àquela altura, contra boa parte da esquerda, que a luta a ser travada era pela democracia, não pelo socialismo.
Mais do que apenas seguir os passos de um dos maiores sociólogos brasileiros e o único que chegou -acidentalmente, ele diz- à Presidência, o livro nos apresenta um mosaico que funciona como ponte entre o legado do intelectual e o horizonte do político.
Dizer que as análises de conjuntura ou as intervenções públicas de FHC resistem ao tempo parece insuficiente. Vista em retrospectiva, a trajetória que o livro desenha impressiona pela acuidade, pela coerência, pela capacidade de antevisão, pela maneira com que o autor consegue transitar entre os fatos e os conceitos, entre a percepção do momento e a compreensão estrutural da dinâmica histórica.

Obra acadêmica
Essas são também as características da obra acadêmica que FHC construiu sobretudo nos anos 60. Na sua tese de livre-docência, "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico", publicada em 1964, FHC desmontava a tese do PC, então hegemônica na esquerda, segundo a qual a burguesia nacional era aliada da classe operária na luta contra o latifúndio e o imperialismo. Nossos industriais já eram, na verdade, "sócios menores" do capital internacional, dizia FHC, desarranjando esquemas da época.
"Há um descompasso entre a ciência social e a realidade", diz o autor numa entrevista de 1981 (pág. 65). E talvez não exista no Brasil intelectual de peso mais avesso a esse descompasso do que FHC. "Há setores da esquerda brasileira que continuam vivendo entre fevereiro e outubro de 1917", diz ele, em 1977, em entrevista à "Veja" (pág 155).
Tome-se como antídoto contra essa esquerda fossilizada o seguinte trecho: "No Brasil, embora haja a Amazônia e os bóia-frias, há uma classe média, que é como se você estivesse em Paris. Movimento feminista, comunicação visual muito rápida. Para decifrar o enigma brasileiro, você tem que juntar reivindicações que são da classe média com as que são da classe operária, misturando-as com ecologia, modernidade etc" (pág 60). Trata-se de uma entrevista concedida em 1978.
O que dá uma ideia do valor histórico, mas também da incrível atualidade deste pequeno livro.


RELEMBRANDO O QUE ESCREVI - DA RECONQUISTA DA DEMOCRACIA AOS DESAFIOS GLOBAIS

Autor: Fernando Henrique Cardoso
Organização: Miguel Darcy de Oliveira
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 40, em média (196 págs)
Avaliação: bom




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