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São Paulo, sábado, 24 de maio de 2003

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RODAPÉ

Crônicas da vida danificada

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Um livro de contos que começa como crônica e termina como um quase-romance. Essa é uma das definições possíveis para "A Razão Selvagem", do escritor mineiro Francisco de Morais Mendes.
A discussão sobre aquilo que distingue o conto da crônica vale um tratado. Mas é possível dizer, de modo esquemático, que o conto descreve e qualifica uma ação, determinando seu princípio, seu fim, sua causa única, sua consequência irreversível. A crônica, ao contrário, é um instantâneo de realidade, um recorte de tempo que se confunde com outras situações similares. O conto se apropria da mecânica dos acontecimentos para transtornar nossa visão da realidade: daí o recurso frequente a enredos paradoxais que revelam, por meio de uma lógica rigorosa, a desrazão do mundo. Já a crônica nos diz que até os acontecimentos mais estranhos são exemplares de uma existência homogênea, familiar.
Obviamente, estou simplificando: há contistas anedóticos e cronistas do absurdo. Mas o fato é que as virtudes (e os defeitos) das narrativas de Mendes parecem advir de um trânsito incessante entre esses dois gêneros.
Ele pertence a uma geração responsável por um novo "boom" da narrativa curta, semelhante à que ocorreu nos anos 70. O que separa uma geração da outra parece ser um progressivo esfacelamento da experiência. Por mais ousados que fossem em suas experimentações formais, aqueles autores (Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna, Luiz Vilela) queriam resgatar uma vivência urbana que fora sufocada por uma tradição literária regionalista e pela censura militar.
Quase 30 anos depois da abertura política, a degradação dessa realidade urbana gerou um novo surto, com autores contemporâneos que procuram representar não mais a experiência da cidade, mas sua impossibilidade: daí a proliferação de textos não-lineares e microcontos, focos narrativos conflitantes e personagens mergulhadas no solipsismo.
Hoje, em escritores como Fernando Bonassi, André Sant'Anna ou Ronaldo Bressane, tudo aponta para a alienação que define nossas vidas danificadas. Mas o resultado literário, muitas vezes, são contos em que há mais andaime do que argamassa. Nesse sentido, Mendes destoa dessa generalização, injetando uma espontaneidade típica da crônica na solidão de suas personagens.
O que chama a atenção em "A Razão Selvagem" é a paciência narrativa do autor, que tem um evidente prazer em descrever cada gesto ou cada motivação interior, fazendo com que o tempo da leitura pareça coincidir com o tempo do fato narrado. A essa melodia em surdina, que perambula pelos aposentos e pelos corredores dos prédios de classe média, correspondem personagens que convivem com lembranças, obsessões, promessas de reencontro com o tempo perdido.
Há sempre tramas paralelas nos contos de Francisco de Morais Mendes. Em "Apartamentos", acompanhamos um fotógrafo que se obstina em retratar espaços vazios e encontra uma adolescente que contamina sua peregrinação com uma aflitiva e ambivalente história familiar. Em "Quimera", um professor cujo filho morreu em um atentado na França sofre a sedução de uma aluna, compondo um estado de confusão emocional semelhante ao das quimeras literárias que pesquisa ("quimera" é monstro fabuloso em que se misturam leão, cabra e serpente).
Mas o desenlace dessas histórias é sempre sutil, sem descobertas ou modificações devastadoras. Mesmo quando o narrador é o interno de um manicômio (como em "Rede"), as analogias entre uma aranha que tece sua teia e as teias que enredam os homens podem chegar a uma exuberância de imagens orgânicas e mitológicas; porém, há sempre um intervalo entre essas metáforas delirantes e a voz pacífica que as entoa.
Algumas vezes, essa sensibilidade de cronista redunda em narrativas que se limitam ao insólito ("Você Ainda Está Aí?", em que o trote telefônico de um falso suicida assume feições dramáticas) ou ao divertido ("Cartas Trocadas", "A Crítica da Razão Selvagem"). Some-se a isso outro traço negativo: os protagonistas do livro são muito semelhantes entre si, homens comuns que parecem saídos do bar da esquina, anestesiando a carga singular de sofrimento e incômodo que cada um desses contos carrega.
Felizmente, é o contrário disso que acontece em "Um Diário para SD", melhor e mais longo conto do livro, com vários núcleos narrativos ao redor de um protagonista que tem a complexidade de um herói de romance. As leituras e os amores de SD (personagem identificado por iniciais que o despersonalizam), suas idas e vindas, empenhado na tradução de um romance que se insinua em sua vida empírica, se desdobram na farsa iluminadora em que o protagonista se faz passar por padre para consolar a dor de um moribundo.
E essa ambiguidade, por sua vez, materializa a própria errância narrativa de Francisco de Morais Mendes, uma hesitação entre o conto e a crônica que absorve ilusões e desvarios numa banalidade cotidiana e melancólica.


A Razão Selvagem
   
Autor: Francisco de Morais Mendes Editora: Ciência do Acidente Quanto: R$ 24 (144 págs.)



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