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RODAPÉ
Crônicas da vida danificada
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Um livro de contos que começa como crônica e termina como um quase-romance. Essa é uma das definições possíveis
para "A Razão Selvagem", do escritor mineiro Francisco de Morais Mendes.
A discussão sobre aquilo que
distingue o conto da crônica vale
um tratado. Mas é possível dizer,
de modo esquemático, que o conto descreve e qualifica uma ação,
determinando seu princípio, seu
fim, sua causa única, sua consequência irreversível. A crônica, ao
contrário, é um instantâneo de
realidade, um recorte de tempo
que se confunde com outras situações similares. O conto se
apropria da mecânica dos acontecimentos para transtornar nossa
visão da realidade: daí o recurso
frequente a enredos paradoxais
que revelam, por meio de uma lógica rigorosa, a desrazão do mundo. Já a crônica nos diz que até os
acontecimentos mais estranhos
são exemplares de uma existência
homogênea, familiar.
Obviamente, estou simplificando: há contistas anedóticos e cronistas do absurdo. Mas o fato é
que as virtudes (e os defeitos) das
narrativas de Mendes parecem
advir de um trânsito incessante
entre esses dois gêneros.
Ele pertence a uma geração responsável por um novo "boom" da
narrativa curta, semelhante à que
ocorreu nos anos 70. O que separa
uma geração da outra parece ser
um progressivo esfacelamento da
experiência. Por mais ousados
que fossem em suas experimentações formais, aqueles autores
(Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna, Luiz Vilela) queriam resgatar
uma vivência urbana que fora sufocada por uma tradição literária
regionalista e pela censura militar.
Quase 30 anos depois da abertura política, a degradação dessa
realidade urbana gerou um novo
surto, com autores contemporâneos que procuram representar
não mais a experiência da cidade,
mas sua impossibilidade: daí a
proliferação de textos não-lineares e microcontos, focos narrativos conflitantes e personagens
mergulhadas no solipsismo.
Hoje, em escritores como Fernando Bonassi, André Sant'Anna
ou Ronaldo Bressane, tudo aponta para a alienação que define
nossas vidas danificadas. Mas o
resultado literário, muitas vezes,
são contos em que há mais andaime do que argamassa. Nesse sentido, Mendes destoa dessa generalização, injetando uma espontaneidade típica da crônica na solidão de suas personagens.
O que chama a atenção em "A
Razão Selvagem" é a paciência
narrativa do autor, que tem um
evidente prazer em descrever cada gesto ou cada motivação interior, fazendo com que o tempo da
leitura pareça coincidir com o
tempo do fato narrado. A essa
melodia em surdina, que perambula pelos aposentos e pelos corredores dos prédios de classe média, correspondem personagens
que convivem com lembranças,
obsessões, promessas de reencontro com o tempo perdido.
Há sempre tramas paralelas nos
contos de Francisco de Morais
Mendes. Em "Apartamentos",
acompanhamos um fotógrafo
que se obstina em retratar espaços
vazios e encontra uma adolescente que contamina sua peregrinação com uma aflitiva e ambivalente história familiar. Em "Quimera", um professor cujo filho morreu em um atentado na França sofre a sedução de uma aluna, compondo um estado de confusão
emocional semelhante ao das quimeras literárias que pesquisa
("quimera" é monstro fabuloso
em que se misturam leão, cabra e
serpente).
Mas o desenlace dessas histórias
é sempre sutil, sem descobertas
ou modificações devastadoras.
Mesmo quando o narrador é o interno de um manicômio (como
em "Rede"), as analogias entre
uma aranha que tece sua teia e as
teias que enredam os homens podem chegar a uma exuberância de
imagens orgânicas e mitológicas;
porém, há sempre um intervalo
entre essas metáforas delirantes e
a voz pacífica que as entoa.
Algumas vezes, essa sensibilidade de cronista redunda em narrativas que se limitam ao insólito
("Você Ainda Está Aí?", em que o
trote telefônico de um falso suicida assume feições dramáticas) ou
ao divertido ("Cartas Trocadas",
"A Crítica da Razão Selvagem").
Some-se a isso outro traço negativo: os protagonistas do livro são
muito semelhantes entre si, homens comuns que parecem saídos do bar da esquina, anestesiando a carga singular de sofrimento
e incômodo que cada um desses
contos carrega.
Felizmente, é o contrário disso
que acontece em "Um Diário para
SD", melhor e mais longo conto
do livro, com vários núcleos narrativos ao redor de um protagonista que tem a complexidade de
um herói de romance. As leituras
e os amores de SD (personagem
identificado por iniciais que o
despersonalizam), suas idas e vindas, empenhado na tradução de
um romance que se insinua em
sua vida empírica, se desdobram
na farsa iluminadora em que o
protagonista se faz passar por padre para consolar a dor de um
moribundo.
E essa ambiguidade, por sua
vez, materializa a própria errância
narrativa de Francisco de Morais
Mendes, uma hesitação entre o
conto e a crônica que absorve ilusões e desvarios numa banalidade
cotidiana e melancólica.
A Razão Selvagem
Autor: Francisco de Morais Mendes
Editora: Ciência do Acidente
Quanto: R$ 24 (144 págs.)
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