São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Monopólios da violência

Só haverá futuro para um Estado quando este for capaz de destruir os monopólios de violência que lhe são rivais

SEMANA TRISTE. Enquanto São Paulo ardia e matava, eu passava o meu tempo lendo, escrevendo e comentando na TV as tragédias da cidade. Fenômeno uniforme: para a opinião européia, os ataques são resultado evidente de desigualdades brutais que alimentam confrontos brutais. De acordo com o pensamento estabelecido, pobreza gera crime que gera pobreza. Solução? Acabar com a pobreza que gera crime que gera pobreza.
Existe alguma verdade nessa versão. Mas só parte dela tem utilidade para entender os dias de terror. Cláudio Lembo afirma que os comportamentos da elite branca não são recomendáveis? Sou insuspeito de simpatias marxistas e, com a devida vênia ao governador, escrevi o mesmo há uns meses, nesta Folha, sobre as "antielites" do Brasil (Mais!, 4/9/2005). Não é só a vulgaridade e o exibicionismo que horrorizam qualquer criatura mortal. É a ausência de "dever": de pensar o país como um todo e não como feudo privado onde se reproduzem os piores vícios de um regime informalmente escravagista.
Mas, se Lembo está certo na análise, está errado no tempo da análise. Só é possível discutir o papel das elites num Estado moderno quando, logo para começar, existe um Estado moderno. E entender o que significa um Estado moderno implica entender como ele emergiu e como ele sobrevive hoje.
Max Weber, pouco lido, mas muito certo, deixou uma análise que mantém validade: o Estado só emergiu como estrutura de jurisdição independente porque foi capaz de expropriar a autoridade e a violência de senhores feudais que, no interior de um território, exerciam seu poder. A emergência do Estado implicou, no fundo, um confronto com esses poderes disseminados e a capacidade de os submeter ao monopólio de violência que é prerrogativa do Estado. Qualquer discussão sobre o Estado moderno começa na capacidade deste para impor a violência sobre seu território e, no caso de um Estado de Direito, de impor uma violência legítima em caso de perigo.
O combate à pobreza pode ser uma luta crucial para o futuro do Brasil. Mas, antes dessa luta, existe outra, bem mais primária no sentido histórico do termo. Experiências recentes, a começar em Nova York, mostraram isso: no espaço de uma geração, uma descida de 70% no crime não se fez com "programas sociais". Não se fez, para usar a palavra da moda, com mais "inclusão". Fez-se com mais "reclusão", policiando e quebrando organizações criminosas que eram pequenos Estados dentro do Estado. Uma atitude que acabou por ter um efeito surpreendente: com a descida do crime na sociedade, desceu o número de detenções, ou seja, desceu uma população prisional que se julgava condenada a uma sobrelotação explosiva. Não é apenas a pobreza que gera o crime. É o crime que gera o crime.
Nos últimos dias, São Paulo regressou a uma era pré-moderna, em que senhores feudais ditaram as regras a seus vassalos: ditaram a guerra e a paz. Se a história ensina alguma coisa, é que só haverá futuro para a sobrevivência de um Estado quando este for capaz de destruir os monopólios de violência que rivalizam com o seu. Uma luta de vida ou morte. Literalmente.

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