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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Politeístas, graças a Deus
Pensando nas atitudes concretas em relação a Deus, o monoteísmo medieval era bastante flexível, diz Le Goff
ESTAVA EU, no fim de semana,
num agradabilíssimo jantar,
cercado de doutos e adoráveis
amigos, quando, nos licores, a longa
mesa ia se transformado em rodinhas de conversas variadas. Numa
delas, a mais próxima de mim, entreouvi que o assunto era Bizâncio e
a substituição do politeísmo pagão
pelo monoteísmo cristão. Estimulado por meu reincidente espírito provocador (e também por Baco, devo
admitir) soltei a frase fatal: "O cristianismo também é politeísta".
Vaias, gritos, lições escolares. Meu
doce amigo cineasta não se conteve:
"Bem, quando o Marquinhos começa a dizer que o cristianismo é politeísta, é hora de irmos embora".
Tratava-se, como parece claro, de
uma "boutade". Inspirou-me uma
leitura recente, que me causou impressão, embora não deva constituir
novidade para os conhecedores de
história das religiões. Refiro-me a
"O Deus da Idade Média", um pequeno volume no qual o historiador
francês Jacques Le Goff concede
uma entrevista sobre o tema a Jean-Luc Pouthier, redator-chefe da revista "Le Monde de la Bible". O volume veio parar em minhas mãos e,
sob os eflúvios da visita papal, decidi
lê-lo.
O historiador, obviamente, não
duvida de que o grande acontecimento do que ele chama de Antiguidade tardia, do ponto de vista do
dogma religioso, tenha sido a substituição do politeísmo pelo monoteísmo. Ele procura esclarecer, no entanto, que, em se tratando das crenças e das atitudes concretas a respeito de Deus, o monoteísmo cristão
medieval era bastante flexível. Ele
lembra que foi acidentada a passagem de um sistema para o outro,
marcada pela adoção, por parte do
Império Romano, do Deus que perseguira e pela difusão dessa divindade oriental no Ocidente.
A complexidade e os percalços, a
crer em Le Goff, não estavam ligados
tanto à resistência do antigo paganismo, mas a uma série de outros fatores. Estamos falando do reino medieval, com seu viveiro de superstições, alimentado por uma população rural assombrada por demônios
e divindades, muitas das quais ligadas à natureza.
No terreno teológico, as interpretações são as mais divergentes em
torno do estatuto desse monoteísmo, desde já comandado por uma
trindade, formada por um Deus, por
seu filho enviado ao mundo dos homens e pelo Espírito Santo. Às três
entidades, seria inevitável que se
juntasse uma quarta, Maria, mãe de
Deus (ou de Jesus -essa era uma
das discussões). Acrescente-se a isso, o papel dos anjos e, em especial, a
multiplicação dos santos (essas figuras que faziam milagres e vieram a
substituir os heróis pagãos), e temos
um mosaico ainda bastante simplificado das várias faces desse monoteísmo que se tornava hegemônico.
Algo dessa "flexibilidade" a que se
refere Le Goff, parece sobreviver em
nossos tempos. É flagrante na sociedade secular, em especial na católica, que o rebanho se sente cada vez
mais autônomo em relação ao dogma e cultua o "seu" Deus, seja ele
uma figura da trindade, Maria, um
santo ou uma divindade que se confunde com a natureza, a "energia" ou
a justiça social.
Bem, essa conversa já está ficando
bizantina. E, pensando bem, acho
que era isso que meu amigo cineasta
queria evitar -com toda razão.
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