São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Politeístas, graças a Deus

Pensando nas atitudes concretas em relação a Deus, o monoteísmo medieval era bastante flexível, diz Le Goff

ESTAVA EU, no fim de semana, num agradabilíssimo jantar, cercado de doutos e adoráveis amigos, quando, nos licores, a longa mesa ia se transformado em rodinhas de conversas variadas. Numa delas, a mais próxima de mim, entreouvi que o assunto era Bizâncio e a substituição do politeísmo pagão pelo monoteísmo cristão. Estimulado por meu reincidente espírito provocador (e também por Baco, devo admitir) soltei a frase fatal: "O cristianismo também é politeísta".
Vaias, gritos, lições escolares. Meu doce amigo cineasta não se conteve: "Bem, quando o Marquinhos começa a dizer que o cristianismo é politeísta, é hora de irmos embora".
Tratava-se, como parece claro, de uma "boutade". Inspirou-me uma leitura recente, que me causou impressão, embora não deva constituir novidade para os conhecedores de história das religiões. Refiro-me a "O Deus da Idade Média", um pequeno volume no qual o historiador francês Jacques Le Goff concede uma entrevista sobre o tema a Jean-Luc Pouthier, redator-chefe da revista "Le Monde de la Bible". O volume veio parar em minhas mãos e, sob os eflúvios da visita papal, decidi lê-lo.
O historiador, obviamente, não duvida de que o grande acontecimento do que ele chama de Antiguidade tardia, do ponto de vista do dogma religioso, tenha sido a substituição do politeísmo pelo monoteísmo. Ele procura esclarecer, no entanto, que, em se tratando das crenças e das atitudes concretas a respeito de Deus, o monoteísmo cristão medieval era bastante flexível. Ele lembra que foi acidentada a passagem de um sistema para o outro, marcada pela adoção, por parte do Império Romano, do Deus que perseguira e pela difusão dessa divindade oriental no Ocidente.
A complexidade e os percalços, a crer em Le Goff, não estavam ligados tanto à resistência do antigo paganismo, mas a uma série de outros fatores. Estamos falando do reino medieval, com seu viveiro de superstições, alimentado por uma população rural assombrada por demônios e divindades, muitas das quais ligadas à natureza.
No terreno teológico, as interpretações são as mais divergentes em torno do estatuto desse monoteísmo, desde já comandado por uma trindade, formada por um Deus, por seu filho enviado ao mundo dos homens e pelo Espírito Santo. Às três entidades, seria inevitável que se juntasse uma quarta, Maria, mãe de Deus (ou de Jesus -essa era uma das discussões). Acrescente-se a isso, o papel dos anjos e, em especial, a multiplicação dos santos (essas figuras que faziam milagres e vieram a substituir os heróis pagãos), e temos um mosaico ainda bastante simplificado das várias faces desse monoteísmo que se tornava hegemônico.
Algo dessa "flexibilidade" a que se refere Le Goff, parece sobreviver em nossos tempos. É flagrante na sociedade secular, em especial na católica, que o rebanho se sente cada vez mais autônomo em relação ao dogma e cultua o "seu" Deus, seja ele uma figura da trindade, Maria, um santo ou uma divindade que se confunde com a natureza, a "energia" ou a justiça social.
Bem, essa conversa já está ficando bizantina. E, pensando bem, acho que era isso que meu amigo cineasta queria evitar -com toda razão.


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