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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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OITICICA E CAMPOS EM NOVA YORK

O artista e o poeta discutem a característica antropofágica da cultura brasileira

"Brasil é automaticamente underground"

A seguir, leia outro trecho da conversa do poeta Haroldo de Campos e do artista plástico Hélio Oiticica, onde o tema é a característica antropofágica e "underground" da cultura brasileira.
 

Hélio Oiticica - Há uma diferença, pensando nesse negócio de Godard [cineasta francês] e essas experiências de Julinho [Bressane] e esse pessoal [do cinema udigrúdi brasileiro]. Godard é como se fosse uma culminância do refinamento intelectual, no que eu acho que difere muito de coisas do Brasil em geral, que são coisas mais como se fossem descobertas pela primeira vez, ao passo que as coisas européias são culminâncias de processos. O processo é sempre diferente.

Campos - Eu acho muito bom nesse particular uma frase do Décio [Pignatari] a respeito da poesia do Osvaldo [o poeta Oswald de Andrade], quando ele diz que ela é uma poesia da posse contra a propriedade. Uma poesia por contato direto, enquanto a poesia do europeu é uma poesia por decantamento de toda uma tradição. (...) Daí a importância do conceito de antropofagia em termos culturais, porque a antropofagia é uma devoração cultural, é uma maneira de devorar os outros valores, mas de uma perspectiva brasileira, modificando as relações, dando novas ordens nas coisas. Isso é muito importante. Não é uma transposição, mas é uma renovação das ligações entre os fatos. Você junta, como dizia o Osvaldo na tese dele, Sócrates e Tarzan e odaliscas no Catumbi. São tipos de relação feitas em um contexto que é totalmente diferente do contexto europeu.

Oiticica - É uma coisa diária, de contexto diário. Inclusive, jornal, imprensa, essas coisas, todos os meios de comunicação, inclusive a própria televisão brasileira, é muito assim. É o oposto, não é a coisa feita intencionalmente para o consumo, quer dizer, já sabendo que a pessoa quer e gosta. É como se fosse uma avalanche...

Campos - Exatamente. (...) O Chacrinha, que é o grande palhaço da televisão, é o sujeito que levou o circo para a televisão. Tudo nasceu de um programa de rádio dele, onde (...) a própria ausência de meios o obrigou a inventar tudo. Ele é que fazia os ruídos, a sonoplastia. Então, quando ele vai para a televisão, ele percebe que ela é uma linguagem de fragmentos. Quer dizer, a televisão tecnicamente é o que se chama de uma linguagem metonímica, a parte pelo todo. (...) Ele compreendeu a televisão e levou a idéia do circo, que era admirada por artistas como Osvaldo, Maiakovski, uma idéia à qual toda a arte moderna dá uma enorme importância, não apenas como inspiração para a pintura, mas como ambiente de improvisação, de invenção. (...) O Chacrinha teve essa inteligência de levar a idéia do circo para a televisão e fazer uma arte de vanguarda num nível de cultura popular, quer dizer uma espécie de brutalismo de vanguarda. Não é nem primitivismo, porque indicaria uma certa ingenuidade. No caso dele, lidando com um medium comercial, não é ingenuidade: é um brutalismo, uma utilização consciente e brutal do meio.

Oiticica - Agora, nesse ponto, eu acho que coisas feitas no Brasil já têm um caráter a priori underground, no sentido de que o underground americano quer se contrapor à cultura profissionalizada. Por exemplo, o underground foi uma coisa que nasceu para demolir Hollywood. Quer dizer, Hollywood era de tal maneira profissionalizada e condicionada ao gosto do consumo, que, de repente, foi preciso aparecer o underground para outra vez as pessoas poderem fazer as coisas. Mas no Brasil não tem sentido você dizer "underground brasileiro" porque, em relação à cultura de consumo americana, européia, principalmente, a coisa já é automaticamente underground.


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