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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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MÔNICA BERGAMO

A coluna acompanhou um dia de gravação de "Mulheres Apaixonadas"

Oito horas na novela das oito

Felipe Varanda/Folha Imagem
A médica Tereza (à esq.) orienta as cenas de Vanessa Gerbelli no hospital, para que fiquem mais reais


Roteiro de gravação. Cena 21, capítulo 159: Salete brinca com a boneca, mas está triste... A pequena Salete (Bruna Marquezine) dá papinha para a sua boneca de pano e pensa na mãe, Fernanda (Vanessa Gerbelli), em coma no hospital Miguel Couto. Bruna, concentrada, ergue a colher, lentamente. Seus olhos se enchem de lágrimas. CORTA! "Amor, bota esse copo de leitinho um pouquinho mais à direita. Nem tanto, agora você tirou ele totalmente [da visão da câmera]. Menos, menos... Isso. Obrigado, amor." A voz e as ordens do diretor Ricardo Waddington chegam ao estúdio por meio de uma enorme caixa de som pregada na parede. O diretor fica numa sala ao lado, o switcher, vendo, em nove telas, as imagens captadas por quatro câmeras que gravam as cenas.
 

Uma novela da TV Globo em que trabalham 113 atores e 170 profissionais de produção, que gasta R$ 200 mil (um apartamento de classe média) por dia em cada capítulo e é vista por cerca de 45 milhões não pode dar errado. "Não pode dar errado", repete Waddington. É por isso que, naquela terça, 19, ele passou 480 minutos (oito horas) no Projac, o complexo de gravações da TV Globo, gravando cenas que, no ar, duraram 25 minutos. Um fiapo de cabelo na testa de Bruna, e a gravação pára. "Tira o cabelinho do rosto que tá com uma sombrinha, amor."
 

Ao lado de Waddington, no switcher, ficam o diretor de corte, que ajuda a selecionar as imagens captadas pelas câmeras no estúdio, o coordenador de produção e a continuísta, Aurora Chaves. Ela é a responsável pela coerência da trama. Isso significa desde zelar para que um ator esteja com a mesma roupa numa cena (ainda que pedaços dela sejam gravados em dias distintos) até alertar o autor, Manoel Carlos, de que Carlão (Marcos Caruso) e Irene (Marta Mellinger) não poderão comemorar o aniversário de casamento. Por um motivo simples: eles celebraram a data há menos de um ano. Ninguém lembrava. Aurora, sim.
 

Cena 11: apartamento de Lorena. Expedito diz a Lorena que ele e Marina se beijaram... Waddington deixa o switcher e vai até o estúdio para dirigir Lorena (Suzana Vieira). Explica: "Não é uma adolescente que sai enlouquecida depois de ouvir [que o marido, Expedito (Rafael Calomeni), beijara Marina (Paloma Duarte)]. Ela se olha no espelho e diz: "E agora, como vou lidar com isso?'". Suzana completa: "Só no fundo do olho dela se vê que está triste...". É isso. Suzana ensaia com o diretor. Ensaia de novo, para as câmeras. De volta ao switcher, Waddington ordena: "Música!". Philip Glass. O som não irá ao ar. Serve apenas para ajudar na concentração de Suzana. Lágrimas surgem em seus olhos. Gravando! De primeira. Perfeito.
 

Câmeras desligadas, Suzana grita, como se fosse Lorena: "F.d.p., ainda bem que não dei um carro para ele [Expedito]!". A equipe de gravação cai na gargalhada. "Vai de táxi para a casa da outra, Expedito!", brinca a atriz, que chama as 30 pessoas que estão no estúdio -o ator Calomeni, camareiras, cabeleireiros, maquiadores, assistentes, contra-regras- de "Zuzu".

Na banheira de Lorena

Cena 9: banheira de Lorena, ela coberta de espuma até o pescoço... ele [Expedito] olha disfarçadamente da porta...
"Que frio, Zuzu", diz Suzana à equipe do estúdio. Ela está de lingerie dentro da banheira de espuma, pronta para nova cena. A camareira, Shirley Motta, 42, leva toalhas. Há 14 anos na TV Globo, ela já viu Maitê Proença nua. Já viu Lúcia Veríssimo nua. E Vera Fischer. "Ela ia gravar com o Tarcísio Meira. Eu mesma me assustei: "Gente, ela ficou nua mesmo". Tinha um monte de gente em volta. Corri para dar o roupão. E a Vera disse: "Não precisa, Shirley". A Vera é a Vera. Todo mundo respeita", diz Shirley. "Estou escrevendo até um livro: "Memórias de uma Camareira'", revela, feliz. Gravando. Lorena está mergulhada na espuma. Expedito espia.
CORTA! "Tem uma sujeira na borda da banheira. Que sujeira é essa?", pergunta Waddington. A produtora Flávia Cristófaro corre até a banheira. "Está descascada." Waddington pede que se cubra a mancha com espuma. "Tem um risco no espelho", nota ele. E lá vai Flávia resolver. "Que garrafa de Fanta Laranja é essa na banheira, ao lado da Suzana?" Sais de banho. "Tira daí." Flávia é uma das quatro assistentes de Ângela Melman, a responsável por todos os objetos que aparecem nas cenas -toalhas, copos, talheres, flores, frutas. Ângela alugou, por exemplo, 12 carros para a cena em que Tony Ramos e Vanessa Gerbelli foram baleados. Um adestrador aluga os cachorros de Edwiges (Carolina Dieckmann) por R$ 250/dia.

A doutora do Projac

Cena 1: hospital Miguel Couto. Helena encontra Miguel e pede para ele ajudá-la a ver Fernanda... Depois de rápido almoço, a equipe volta ao estúdio para gravar as cenas em que Helena (Christiane Torloni) vai ao CTI do hospital Miguel Couto para ver Fernanda. Centenas de figurantes tomam o estúdio para interpretar pacientes do hospital. Daniel Soares, 21, é o "doente" que fica ao lado de Fernanda. Queria seguir carreira no Exército. Acabou recrutado por uma empresa de figurantes numa academia de ginástica. Ganha R$ 42 por dia para ficar deitado no CTI.
 

A médica Tereza Cristina Machado é peça fundamental nas cenas. Ainda no início da novela, ela fez laboratório com os atores que representariam médicos ou doentes. Ela orienta a maquiagem dos ferimentos, coloca a máscara de oxigênio em Fernanda (Vanessa Gerbelli), os esparadrapos em Téo (Tony Ramos) e dá consultoria a Manoel Carlos em detalhes do texto. Por exemplo: médico nunca fala "tiro no peito", e sim no "tórax". Depois do OK dela, começam as gravações.

Cena 12. Corredor do CTI. Helena olhando do vidro sem saber quem é Fernanda... Uma cena banal. No ar, dura oito segundos. Levou 20 minutos para ser gravada. "Chris, essa sombra no seu rosto, meu amor... Chega para a direita", pede Waddington. Gravando. CORTA! Há um reflexo no vidro. Gravando. CORTA! Um figurante se mexeu. Gravando. CORTA! "Olha para a esquerda, Chris!" OK. Próxima cena. O tempo é escasso. Às 19h, o estúdio fecha. Mais tempo, mais dinheiro. O médico Miguel (Bruno Padilha) encontra Helena. CORTA! "Tá galã demais!" Bruno tenta uma, duas, cinco vezes. "Me dá um presente agora, Bruno", diz Waddington. São 19h10. OK!!! Todos vão para suas casas. Menos o diretor. Ele ainda vai editar o capítulo, ao lado de Rosângela Rodrigues, professora de português contratada há um mês. "Tinha muito erro", diz Waddington. Coisas do português coloquial, como "sentar na mesa" em vez de "sentar à mesa", e outras até chatas, como "é para eles poderem conversarem". Detectado o erro, o ator volta e dubla a fala. Afinal, não pode dar errado. Nada pode dar errado.


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