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Só tinha de ser com você
Mixagem de alta tecnologia dá sentido novo ao histórico álbum "Elis & Tom", 30 anos depois de sua primeira edição
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
2004. Você está dentro do estúdio, os olhos fechados. À sua frente está Elis Regina, que canta e
chora, emocionada pelo que produz na presença de Antonio Carlos Jobim. Ao lado dela, o maestro
toca piano e também chora. Juntos, os dois gravam o histórico álbum-encontro "Elis & Tom" -e
você está presente, ouvindo tudo
de olhos fechados. A linha irrevogável do tempo endoidou, rebobinou 30 anos daqui para trás. 1974.
Tal cena não é descrição de sonho, mas promessa ambiciosa levada às lojas de discos pela gravadora Trama, co-dirigida pelo filho
mais velho de Elis, João Marcello
Bôscoli, 33. A sensação de proximidade é efeito da alta tecnologia
utilizada na reconstrução do álbum, orientada por Cesar Camargo Mariano, 60, ex-marido de Elis
e arranjador do LP original.
O mergulho de Mariano no passado traz de volta a fogueira das
paixões de um tempo em que Elis
Regina (1945-82) era viva, em que
Antonio Carlos Jobim (1927-94)
era vivo, em que ambos se uniam
num registro hoje mundialmente
celebrado e admirado.
A fogueira incendeia Mariano,
em primeiro lugar. "Foi muito
forte pegar os tapes originais, com
todos os barulhos de pés no chão,
os papos. O cheiro todo do estúdio veio de novo para mim, relembrei toda aquela tensão."
Eis um dos diálogos tensos/divertidos que ele captou e manteve
na nova edição do disco, na introdução de "Inútil Paisagem":
Elis: "Cesar, já fumei um maço
de cigarro, pode?". Cesar: "Não
pode". Tom: "Diz a ela que ela já
tá crescida, pode fumar à vontade.
Te dei a piteira, com a piteira filtra
tudo". Elis: "Mas fica pernóstico,
com piteira fica pernóstico".
Homem que aos 30 anos enfrentava com pianos elétricos as
convicções de um Jobim quase
cinqüentão, Mariano borda em
sentido contrário os acontecimentos que desaguaram nas
"Águas de Março" de "Elis &
Tom", gravado entre 22 de fevereiro e 9 de março de 1974.
Cena 1, gravadora. A Philips
(hoje Universal) se dá conta de
que Elis comemorará dez anos
como artista da casa e lhe oferece
um presente de livre escolha.
"Eram propostas engraçadas:
festa, viagem à Europa, carro, geladeira. Elis respondeu: "Presente?
Não, eu quero gravar um disco'",
conta Mariano. Fácil? Nem tanto:
ela queria gravar um disco com
Tom Jobim. "Começaram os problemas. Tom não estava no Brasil,
era complicado fazer, custava dinheiro. Elis: "Presente é presente,
tem que ser com Tom"." Foi.
Vinha de um disco com várias
canções dos jovens João Bosco e
Aldir Blanc, partiria para um projeto tão controverso quanto aquele, segundo Mariano: "Bosco foi
muito combatido no início. Era
uma chiadeira geral Elis resolver
gravar um disco com canções dele. Mas Tom Jobim também era
muito contestado, há artista muito importante que na época dizia
que Tomzinho era "um bosta'".
Elis aparecera ao Brasil, em 64/
65, consolidando uma segunda
dentição da bossa nova, que sem
querer ou querendo escanteara o
trio original Jobim-João Gilberto-Vinicius de Moraes. Mulher-arrastão, fazia protesto, cantava forte, assustava o patinho, enervava
o amor, o sorriso e a flor.
Um disco com Jobim concretizaria uma reconciliação geracional ensaiada desde 72, quando
gravara a recém-nascida "Águas
de Março". "O projeto gerou de
cara muita insegurança na gente.
Depois soubemos que em Tom
também, "está vindo aí a maior
cantora do Brasil". Era saia justa."
Para erradicar qualquer foco
persistente de tensão, foi convocado como mediador o produtor
Aloysio de Oliveira (1914-95), em
cujo currículo já constavam integrar o Bando da Lua de Carmen
Miranda e bancar na gravadora
Odeon o advento da bossa nova.
Cena 2, vida familiar. Elis chega
a Los Angeles, carregando a tiracolo o filho de três anos, João
Marcello Bôscoli, que diz que
guarda memórias nítidas de então: "Com o trauma da morte dela, quando eu tinha 11 anos, cada
gota de memória passou a ser minha infra-estrutura. Lembro de
mim na Disneylândia com casaquinho vermelho, de Tom me
carregando pelo pé, da figura de
Wanderléa na beira de uma piscina".
É que Wanderléa morava em
Los Angeles e era amiga próxima
de sua mãe, uma artista que, embora tida como irascível, nos bastidores freqüentava a música num
espectro que ia da jovem guarda à
bossa nova. Cesar, que também
arranjara discos de Wanderléa,
diverte-se: "João confessou que
era apaixonado por Wanderléa,
pediu que ela tirasse a roupa".
Cena 3, trabalho. Primeiro encontro, a tensão vai a píncaros.
Previamente avisado de que o jovem marido de Elis será o arranjador do LP, Tom de repente pergunta: "Aloysio, quem é que vai
fazer os arranjos?". Lembra Mariano: "Aloysio ficou vermelho,
disse: "É ele, ué". Eu quase fugi correndo para a casa da minha mãe".
Jobim resiste à decisão de levar
músicos brasileiros para a gravação, fala dos "arranjos americanos contra as pobres notas brasileiras". "Ô, Mariano, o que é isso?" "É um piano elétrico." "Aloysio, piano elétrico???" Elis fugia para o banheiro, Aloysio pegava o
copo de uísque. Mas, no final do
primeiro dia, já estávamos ao piano a quatro mãos, criando."
Cena 4, torrente. O disco roda
na vitrola, Elis dá gostosas gargalhadas durante a convulsão das
"Águas de Março", durante a briguenta "Brigas, Nunca Mais". Cesar: "Tom era um moleque, estava
sempre fazendo micagens. Às vezes Elis não segurava a gargalhada. Dali a pouco começavam a
gravar "Só Tinha de Ser com Você", do meio para o final estavam
os dois em prantos".
Cena 5, desenlace. "Elis acabou
as gravações absolutamente realizada. Ficou dias e dias e meses e
meses e anos e anos falando nisso." A Cesar resta passar uma madrugada mixando o disco. E mostrá-lo ao pai das canções. Altas
horas da madrugada, bate à porta
de Jobim, que atende de robe, "a
cuecona aparecendo". Tom ouve
e chora e chora. Poucos dias depois, telefona ao jovem parceiro e
tenta resumir seus sentimentos.
"Disse: "Sou uma pessoa acostumada a tomar banho de banheira,
a água parada, a sujeira no meu
corpo. Vocês, não, tomam banho
de chuveiro, a água fresquinha,
passando livre pelo corpo. Entendeu?'". Mariano acha que entendeu: Tom tentava explicar a insegurança que também sentira em
se juntar a artistas tão mais novos.
A história fora escrita.
As historietas que aqui constam
são poucas, diante de tantas ainda
por serem recontadas. Por ora,
você volta a 1974/2004. Vai à faixa
"O que Tinha de Ser", reouve a interpretação triste da maior intérprete do desespero de um Brasil
que também era triste demais.
Elis Regina acaba de cantar e deixa brotar um suspiro profundo,
imortalizado na nova edição.
Seu suspiro se suspende no ar.
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