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CONTARDO CALLIGARIS
O espírito das casas
O espaço no qual circulamos é um dos grandes protagonistas de nossas vidas
NUMA MESMA tarde, assisti
(com prazer) a duas estréias
da sexta passada: uma história de horror, "Almas Reencarnadas", de Takashi Shimizu, e uma história de amor, "A Casa do Lago", de
Alejandro Agresti.
Os dois filmes têm em comum um
clima sobrenatural. No primeiro,
um diretor de cinema filma a história de uma série de assassinatos que
aconteceram num hotel 35 anos antes; com isso, o passado se desperta.
No segundo, um homem e uma mulher se correspondem e se amam:
eles estão vivendo em épocas diferentes (ele, em 2004; e ela, em
2006), mas na mesma casa.
Interessei-me pelos filmes porque
gosto daquela tradição narrativa na
qual o espaço concreto, em que os
personagens vivem e circulam, é por
sua vez uma personagem importante da história.
No primeiro filme, o hotel (ou sua
reconstrução no estúdio) parece impor a repetição do passado. No segundo, a casa do lago, na qual, em
épocas diferentes, ambos os protagonistas escolhem viver, é a ponte
entre eles, o lugar onde se abre uma
brecha no tempo.
Em geral, subestimamos o espaço
concreto no qual vivemos. Não acreditamos que sentimentos, afetos e
relações dependam também do cenário concreto de nossa vida.
Ora, os militantes do espírito new
age adotaram a arte do feng shui para corrigir as energias negativas de
casas e escritórios. Mas não é preciso disso para entender que o espaço
no qual moramos nos determina e
nos expressa. Que seja ou não escolhido por nós, ele diz qual é a convivência com os outros que desejamos
ou que nos permitimos: banalmente, o tipo de mesa (não só seu tamanho) diz se queremos jantar em
companhia ou cada um no seu canto, a disposição do sofá diz se preferimos conversar com os amigos ou
parar na frente da televisão, e por aí
vai. O mesmo vale para o espaço urbano: temos a vida pública que nossas cidades nos impõem.
Quando, numa mudança, estamos
apostando no futuro, sonhamos
com uma casa e uma decoração desenhadas pelo próprio Walter Gropius, modernistas, limpas, funcionais, despojadas. Tempo atrás, Ana
Verônica Mautner, numa crônica do
caderno Equilíbrio, da Folha, comentou a proliferação de caçambas pelas ruas de São Paulo: reformamos custosamente até os apartamentos que alugamos porque
queremos fazer tábula rasa na hora
de mudar de casa, queremos evitar
que nossos novos caminhos sigam
as passagens que foram desenhadas no chão pelos hábitos de quem
lá morou antes da gente.
Uma vez instalados, esvaziamos
as caixas de nosso passado e nos
tornamos, aos poucos, Biedermeier e kitsch, enchendo o espaço
de móveis que limitam as potencialidades da casa e de lembranças
que nos forçam a continuar sendo
quem sempre fomos (a foto do casamento dos avós, a coleção de pedras que nosso filho juntou no primário, um quadro horrendo que
compramos na lua-de-mel).
Um bom arquiteto ou decorador,
ao visitar nossos aposentos, deveria poder descobrir as grandes linhas de nossa vida relacional: talvez ele pudesse até enxergar, atrás
da vida que temos, a vida que desejaríamos ter. Aviso: se seu parceiro
ou sua parceira muda de repente a
disposição dos móveis de casa, não
é apenas de estética que se trata.
Nas minhas gavetas tenho alguns
romances inacabados. Um deles é a
história de alguém que compra
uma casa cujos antigos donos saíram fugindo, sem nem fazer as malas. O comprador deixa tudo assim
como está (a roupa espalhada, a
forma oca dos corpos nas camas
desfeitas, os pratos do almoço interrompido etc.) e se dedica a adivinhar cada detalhe da existência
de seus predecessores. Claro, comecei esse romance logo após a
morte de meus pais.
Isso me leva de volta ao clima comum aos dois filmes: não sou muito fã do sobrenatural, mas confesso
o seguinte. Numa casa que já abandonei, em Brookline (EUA), eu tinha construído um quarto-biblioteca que evocava, descobri depois,
a biblioteca da casa de minha infância. Um dia, Maria, a jovem mulher que nos ajudava a cuidar da casa (e que dizia ser dotada de poderes mediúnicos), anunciou: "Doutor, seu pai está na biblioteca".
"Meu pai está morto", respondi.
Fui com ela até a biblioteca. "Ele
está lá, sentado", apontou Maria.
Eu não via nada e não acredito em
espíritos, mas perguntei, sem brincadeira nenhuma: "Poderia falar
com ele?". Maria: "Não, mas lhe garanto que ele está sorrindo, feliz".
ccalligari@uol.com.br
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