São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2001

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CRÍTICA
Filme radicaliza linguagem

COLUNISTA DA FOLHA

Na contramão do cineminha covarde que anda por aí, o filme "Lavoura Arcaica" não é uma mera obra de entretenimento. É uma experiência, no sentido de "conhecimento que nos é transmitido pelos sentidos".
O prodígio do filme consiste na superação de uma série de dilemas, alguns falsos, outros reais.
O principal deles é: como levar às telas, sem cair no reducionismo ou na literatice, uma obra literária densa, que em sua dicção elevada restaura o peso e o sentido de cada palavra, para além do seu uso cotidiano e banal?
Luiz Fernando Carvalho enfrentou esse desafio buscando no plano audiovisual uma operação poética análoga à do livro.
Imagens, palavras, ruídos, música -nada tem um sentido meramente funcional, descritivo ou narrativo. Cada um desses elementos pulsa e resplandece com sua força própria, intraduzível.
Reduzido a suas linhas básicas, o "enredo" de "Lavoura Arcaica" é muito simples: rapaz (Selton Mello), movido pela revolta contra o pai (Raul Cortez) e pelo desejo incestuoso por uma das irmãs (Simone Spoladore), abandona a família. O irmão mais velho vai buscá-lo numa pensão.
O filme se organiza em torno do diálogo entre os irmãos. A partir dali, em jorros de imagem que seria empobrecedor chamar de "flashbacks", desenham-se as relações do filho pródigo com cada membro da família: a mãe, a irmã, o pai. No livro, a narração é em primeira pessoa, um fluxo dividido em grandes blocos sem parágrafos e sem pontos finais.
No filme, Carvalho transformou essa subjetividade em luz. De acordo com as pulsões interiores do protagonista, a iluminação pode ser plácida, translúcida ou sombriamente expressionista, a ponto de desfigurar a matéria.
A cena inicial é um exemplo: André se masturba, e seu corpo, transfigurado pelas sombras, lembra o de um Cristo torturado. Solenidade e transgressão confrontam-se em cada plano.
Outro desafio vencido pelo filme é o de erigir uma parábola de dimensão universal sem cair numa alegoria vaga. Tudo no filme é muito palpável. A fotografia excepcional de Walter Carvalho puxa as cores para um tom de terra. O tema vira forma. Por fim, o filme vence a falsa dicotomia entre apuro técnico e intensidade de expressão. "Lavoura" coloca o primeiro a serviço da segunda e pronto. Não faz brilhareco. Brilha de verdade. Em tempo: todos os atores estão formidáveis. (JGC)


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