São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2001

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Montagem desperta escritor

COLUNISTA DA FOLHA

"Em suma, gostei do brinquedo, está bom?", disse Raduan Nassar sobre ter participado de perto da montagem de "Lavoura Arcaica". Este é um caso raro em que o escritor encontrou o diretor ideal, e vice-versa. Em certos momentos, o entusiasmo de ambos era o de dois meninos radicais.
É como se o diretor Luiz Fernando Carvalho tivesse dotado de pilha o velho carrinho -o romance "Lavoura Arcaica", escrito há quase 30 anos-, que já não oferecia tanta atração sobre Raduan, o criador. "Escolhi "Lavoura" por ser um texto não-naturalista, uma expressão alimentada pela radicalidade", diz. Ali, meninos, entenderam-se às mil maravilhas. Até num perfeccionismo meio ranzinza os dois se parecem.
É um caso raro em que o filme terá tanto impacto quanto o livro, ainda que, para o espectador imediatista, possa padecer dos defeitos dos chamados "filmes de arte": longo, teatral, palavroso. No âmbito pessoal, a comunhão entre obra literária e cinematográfica alterou, ao menos na montagem, o "metabolismo" de um Raduan nunca "exatamente alegre".
"É claro que o trabalho do Luiz me proporcionou alegria, poxa, isso não é pouco. Não sou exatamente muito alegre. Mas quando há essa convergência, quando você recebe um aceno de alguém que você nunca viu, sente que saiu da sua solidão", diz Nassar.
Desde que o conheço (há uns sete anos), nunca tinha visto Raduan tão envolvido num projeto -que não fosse, é claro, plantar feijão ou se preocupar, irritadiço, com a alta do preço do concorrente feijão de Santa Catarina.
Pois ele foi uma espécie de co-autor do filme de Carvalho, que costuma brincar: "Do romance, entendo eu; do filme, quem entende é Raduan". De fato, ele participou da concepção da película mais do que admite. Selton Mello foi indicação dele, que se diz "noveleiro" assíduo: "Hoje nem tanto porque durmo cedo, mas antes via muita novela".
Mais importante ainda, talvez, é que o filme tenha vindo energizar um Raduan adormecido como escritor. "Acho muito difícil deixar o que estou fazendo para voltar a ser escritor. Caí fora e perdi os vínculos, motivações. Às vezes penso: será que seria capaz de deixar o que faço e tentar uma reintegração na literatura? Acho quase impossível. Mas de repente... Não digo "desta água não vou beber"."
Na montagem de "Lavoura", afirmou que só voltaria a escrever se fosse sobre o tema da derrota -a derrota a la Hemingway, em "O Velho e o Mar", explicou, do homem que batalha e batalha, experimenta a conquista, mas só consegue mostrar ao mundo a carcaça da vitória. (MF)


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