São Paulo, sexta-feira, 24 de setembro de 2004

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Escritor sai de "inferno astral", diz Arrigucci

DA REDAÇÃO

Julio Cortázar está saindo de um "inferno astral" dentro do cenário da literatura latino-americana. Esta é a opinião do crítico Davi Arrigucci Jr., 61, que fará conferência no ciclo "Cortázar -°Cinema e Literatura".
"Cortázar teve uma importância enorme nos anos 60 e 70. Depois, entrou numa espécie de inferno astral, comum a escritores grandes como ele logo depois de morrerem. Hoje, sinto que está vivo de novo, e com o peso certo, influenciando as novas gerações de contistas hispano-americanos."
O legado literário do argentino é tema da palestra do crítico e professor aposentado da USP. Arrigucci também tratará da relação entre a literatura do escritor e o cinema, a fotografia e a música.
O crítico é autor de um ensaio clássico sobre o argentino, "O Escorpião Encalacrado" (1973, Companhia das Letras), que recentemente recebeu uma versão em espanhol ("El Alacrán Atrapado", ed. Unam/México).
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Arrigucci concedeu à Folha. (SC)
 

Folha - Uma mostra de filmes pode ser uma porta de entrada para a obra literária de Cortázar? Por quê?
Davi Arrigucci Jr. -
Sim. Os filmes têm um apelo muito forte. Às vezes, basta uma imagem criada por Cortázar que um cineasta tenha sido capaz de captar ou uma frase para que uma pessoa se interesse pelo universo do autor. A capacidade de fascínio desse universo cortaziano é muito grande. As imagens que ele criou são imagens em que um detalhe pode levar a uma realidade mais ampla.
Essa natureza de fermento das imagens mais acertadas de Cortázar faz com que, se uma pessoa se aproxima de sua obra por meio de um filme, por exemplo, já estará "na linha de tiro".

Folha - De que maneira a obra literária de Cortázar se relacionava com as outras artes?
Arrigucci -
A música e outras artes estão profundamente relacionadas à maneira como Cortázar concebeu a literatura. Na minha palestra, vou tratar da relação dele com a fotografia e o cinema, sobre os quais ele escreveu em textos teóricos a respeito do conto.
Também devo abordar sua teoria da narrativa, importante para várias gerações de contistas, e sua formação. Nesse ponto, vale ressaltar o peso que teve o surrealismo ao ajudá-lo a forjar uma percepção para sacar coisas a partir das brechas da realidade.
Cortázar tem uma espécie de visão intersticial, uma coisa capaz de captar desvãos na realidade banal de todos os dias. Um certo deslocamento do olhar que percebia territórios especiais para além do dia-a-dia comum das pessoas.

Folha - A capacidade de ver o fantástico no cotidiano o aproxima da linguagem do cinema?
Arrigucci -
Sim, Cortázar desenvolveu uma idéia de aproximar o conto, a narrativa breve, da fotografia. Isso por meio da noção de limite a que ele se impôs e que é um dos traços do conto.
A escrita de Cortázar tinha tensão, mas não cortes abruptos do fluxo narrativo. Ele desenvolveu muito a noção de intensidade, e, paralelamente, temas significativos ligados ao limite.
Tudo com a intenção de que aquilo que narrasse dissesse respeito a uma abertura maior da realidade para outra coisa.

Folha - Como você define o fantástico em Cortázar?
Arrigucci -
Essa é uma palavra que diz muitas coisas, mas, no caso dele, é bastante específica. Para entendê-lo, é preciso prestar atenção nos autores que o influenciaram, de um certo surrealismo e de sua formação argentina. Cortázar é um escritor muito intuitivo e muito intelectual. A combinação dessas duas características compõe a herança borgeana dele. Ou seja, o rigor construtivo casado com uma liberdade grande para captar as coisas que dizem respeito à sua sensibilidade do mundo.
Cortázar tem por um lado o cuidado extremo com o trabalho de arte, o ofício do escritor e, de um outro lado, uma atitude muito libertária de captação dos temas que para ele são significativos.

Folha - O que o diferencia de Borges?
Arrigucci -
Há algo comum entre os dois em motivos como o do labirinto. Mas em Cortázar há uma noção do espaço literário diferente. Ele tem uma captação especial para um espaço poroso, que pode ser uma ponte, uma janela, lugares do espaço que são trabalhados para levar a uma outra coisa.
É nessa outra coisa que o olhar dele se empenha. E com isso ele provoca uma deslocamento da percepção do leitor.
O que ele chamou de fantástico pode ser apenas uma ânsia por uma realidade diferente. Uma forma de escapar de uma realidade comprometida com o lugar comum, com a rotina, com o mundo degradado ou absurdo da realidade contemporânea.


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