São Paulo, sexta-feira, 24 de setembro de 2004

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ENTREVISTA

O curador Hug critica a visão sociológica da arte e diz que nem toda obra tem de explicar a guerra

Adeus à arte CNN

"A arte cria um espaço livre, fora do domínio da política e da economia. Arte é a anticiência, o antidocumentário"

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Menos política e mais estética. Essa é a equação que o curador Alfons Hug quer ver na 26ª Bienal Internacional de Arte, que abre amanhã em São Paulo para convidados e no domingo para o público.
"Não se pode pedir a toda obra de arte que explique a guerra", diz Hug, 54, um alemão que estudou literatura comparada nas universidades de Berlim, Freiburg, Dublin e Moscou. O exemplo que dá para ilustrar sua tese é contundente. Durante a Primeira Guerra (1914-1918), uma carnificina que resultou em 8,5 milhões de mortos, o francês Claude Monet (1840-1926) pintava flores, ninféias, "e ninguém o chamava de frívolo", como frisa.
Na entrevista a seguir, o curador diz que as mostras internacionais que privilegiam a abordagem sociológica confundem arte com documentário, com ciência, quando "a essência da arte é a anticiência e, sobretudo, a anti-reportagem".
 

Folha - O que dizer com "Território Livre", tema da Bienal?
Hug -
Escolhemos "Território Livre" porque reforça a idéia da liberdade que a arte é capaz de criar, da autonomia. É importante frisar que a arte cria um espaço livre, fora do domínio da política e da economia. É uma área extraterritorial na qual os artistas erigem os seus postos de observação, podia até dizer, utópicos.


Folha - Mas isso não é a torre de marfim?
Hug -
Não. Não é um retorno à arte pela arte. É um retorno à arte, simplesmente. Não se pode confundir jornalismo com arte, ciência com arte, o que ocorreu muito nos últimos anos. Nada contra a ciência -ela tem o seu valor e busca verdades. A arte busca verdades, só que de uma maneira muito mais complexa. O que pode ser verdade para você na leitura de uma obra de arte pode ser o contrário para mim. Isso não é possível na ciência. Na ciência, você tem leituras categóricas. A essência da arte é a anticiência e, sobretudo, a anti-reportagem, o antidocumentário.

Folha - Isso é uma resposta à Documenta de Kassel [a mais prestigiada das mostras de arte do mundo], que privilegiou essas questões?
Hug -
Não, a Bienal de São Paulo não critica ninguém. Acho que tem muito discurso sociológico das curadorias de hoje. Não estou falando da Documenta, estou falando em geral. Monet pintou ninféias durante a Primeira Guerra e ninguém o chamava de frívolo. Por ocasião do armistício com a Alemanha, em 1918, Monet fez uma homenagem pintando flores, não um campo de batalha. Para retratar a guerra como guerra, eu prefiro ver televisão. O público que vem a uma Bienal é esclarecido. Mostrar a guerra para ele é pregar para convertidos. Não se pode pedir a toda obra de arte que explique a guerra.

Folha - Então o sr. não exporia "Guernica" de Picasso?
Hug -
Já foi exposto [na 2ª Bienal, em 53-54]. Não dá para comparar a situação dos anos 40 com a atual. Hoje os artistas são mais indiretos.

Folha - O sr. pode dar exemplos?
Hug -
Tem um vídeo de um artista búlgaro, Rassim, que decidiu se converter ao islamismo como experimento estético- a Bulgária é um país dos Balcãs, está inserida nesses conflitos entre Oriente e Ocidente. Ele gravou em vídeo a circuncisão, uma cirurgia complicada num adulto, com anestesia local e muito sangue. Ele fez um vídeo da operação. Muitas pessoas vão achar chocante as imagens. Posso dizer que a cirurgia é uma metáfora para a guerra, para o conflito dos Balcãs, só que ele não está mostrando a guerra. Santiago Sierra, um espanhol radicado no México, mostra uma instalação sonora na qual você escuta tiros e acha que é uma guerra. Chega perto e parece uma guerra. Mas ele gravou uma festa de réveillon, com fogos de artifício, no interior do México. Isso é metáfora inteligente. O artista não deve duplicar o que a gente já viu na CNN.

Folha - Por que o sr. decidiu dar mais ênfase à pintura?
Hug -
Não posso ignorar o fato de que mais da metade das obras produzidas hoje no mundo são pinturas. Antes, a pintura representava só 10% dos trabalhos da Bienal. Elevamos para 25%. Privilegiamos a pintura para fugir um pouco do controle da curadoria. Não posso ir ao ateliê discutir o traço com o artista. Quando é instalação, a curadoria pode interferir. O que mais vejo nas mostras é fotografia e pintura. É uma tendência.

Folha - Isso significa algo?
Hug -
A minha opinião pessoal é que nos países mais industrializados ocorre o retorno à pintura e ao desenho, o retorno ao zero, como uma resposta às promessas do "high tech", do mundo virtual, no qual já muita gente não acredita mais. Se quer criticar os desvios da alta tecnologia, os abismos que a ciência abre, você não ataca a ciência, volta à pintura. É muito mais eficaz do que dizer que a tecnologia é uma merda.

Folha - Por que a fotografia virou uma mídia dominante?
Hug -
Fotografia é tão forte quanto a pintura até porque existem iconografias dentro da fotografia contemporânea. Elas podem ser classificadas como pintura. Tem a fotografia de paisagem, uma especialidade alemã. A fotografia tem tantos adeptos porque é o elo com outros suportes, tem a ver com pintura, escultura e vídeo.

Folha - Por que o sr. apostou em artistas jovens, muitos dos quais não fizeram exposição individual?
Hug -
Também não é assim. Eu apostei nos jovens no caso dos paulistas: são novíssimos. Até porque todos os mais maduros já foram mostrados. A função da Bienal é descobrir novos talentos. Como estrangeiro, tenho de arriscar. Se faço uma lista conservadora todo mundo vai dizer: "O alemão não tem noção nenhuma, ele só copiou a lista dos outros curadores".


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