São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2007

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NELSON ASCHER

Religião e culto à natureza


Quem quer que tenha se aliado taticamente a fanáticos religiosos fez um pacto com o diabo

QUE O homem se desumaniza para humanizar uma divindade qualquer, este é um pecado do qual os marxistas de outrora, quer dizer, aqueles que ainda não sabiam, como "sabem" os atuais, que o paraíso socialista e a restauração do Califado são sinônimos, acusavam a religião. Quem é que hoje em dia se lembra de que houve um tempo em que a esquerda se considerava radicalmente humanista e colocava o ser humano no centro do universo? Pode-se inclusive sugerir que foi essa promessa de re-humanização do ser humano alienado de si mesmo pela crendice e superstição que, às vezes, mais do que o estado corrente da sociedade, levou indivíduos inteligentes a ingressarem nesta célula ou filiarem-se àquele partido.
Quem quer que tenha se aliado taticamente a fanáticos religiosos porque compartilhava inimigos comuns com esses fez, sem sabê-lo, um pacto com o diabo, um pacto pelo qual está condenado a, em breve, pagar caro. Pois, ao contrário da esquerda, os teocratas pensam estrategicamente e, é óbvio, uma demonologia em comum está longe de ser uma teologia, que aqueles não possuem, ou uma teleologia, que aqueles tampouco possuem.
Infelizmente, não adianta alertá-los, e eles já criaram um conjunto de acusações e insultos que serve para interditar a discussão, não sobre a maioria das religiões (que podem ser vilipendiadas à vontade), mas apenas a respeito de uma específica, justamente a que não fez as pazes nem com a distinção entre as esferas pública e privada, nem com a separação entre Igreja e Estado, nem com a modernidade.
Embora a aliança mencionada acima tenha sido rápida e mal-sucedidamente (para os estrategicamente simplórios) esboçada no final dos anos 70, foi somente nos últimos seis anos que, para quantos foram privados, pela demolição do Muro de Berlim, de uma causa positiva, ela se recompôs.
E, se nem todos se surpreenderam como eu, convém observar que tal aliança havia sido preconizada por outra não tão diferente.
Muitos que se julgavam não apenas progressistas, como também humanistas, haviam, talvez sem sequer compreendê-lo, adotado antes idéias e programas que retiravam o homem do centro e o lançavam numa periferia mais e mais distante. Refiro-me à convergência que parece ter se estabelecido nos anos 90 entre determinada esquerda organizada ou recém-desorganizada e os defensores de causas aparentemente tão apolíticas quanto salvar as baleias, reflorestar alguma região etc.
Movimentos regressivos como estes e os que combatiam e combatem desde o consumo de bens e serviços ao uso de combustíveis fósseis ou da energia nuclear, os que se apavoram com um aquecimento global cujas causas (e efeitos) não são bem conhecidos, os que pregam ciências e medicinas "alternativas" ou a substituição das cidades pelo campo elementar e puro (algo brevemente alcançado pelo Khmer Vermelho no Camboja), tudo isso teria sido visto como extremamente reacionário por Marx e Engels, por Lênin, Trotsky e Stálin.
O que essas causas todas têm em comum é, expulsando o homem de seu lugar central, fazer de conta que quem está tentando entender o contexto não é sequer um ser humano, mas uma entidade capaz de decidir neutramente entre nossos interesses e os de uma árvore ou de um inseto à beira da extinção. Seus militantes (como diriam os velhos marxistas) seguem o caminho da religião ao nos desumanizarem para humanizar uma natureza tão idealizada quanto mal conhecida.
A lógica do "inimigo comum" (capitalismo, imperialismo etc.) serviu aqui também para cimentar uma aliança improvável, de modo que a penúltima década assistiu a uma simbiose entre a esquerda política e as ONGs mais insanas do planeta. Enquanto os politizados descobriam a possibilidade de subverter a "nova ordem internacional" salvando as baleias, seus amigos verdejantes constatavam que a salvação das baleias pressupunha a abolição da tecnologia, do consumo e assim por diante.
Nenhuma pessoa normal prefere um rio poluído a outro cujas águas cristalinas acolham peixes e banhistas. Ninguém em sã consciência troca um belo jardim por alguns ermos metros quadrados de concreto ou o ar perfumado pelo fedorento. Não é isso que está em questão. Cuidar do meio ambiente é bom, desde que sejamos nós os beneficiários, pois os que convertem a natureza em algo a ser cultuado, bem como seus aliados, estão sempre a um passo de adotar qualquer religião, de preferência a mais rancorosa que houver no mercado.

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