São Paulo, quinta, 24 de setembro de 1998

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ANÁLISE
Ruas e veredas se distanciam da norma culta

XICO SÁ
da Reportagem Local

"Mai, teco, táis me malassombrando?!", diz a "boyzinha" para o seu príncipe de Recife, São João do Cariri (PB), Crato (CE), Picos (PI), Touros (RN), Aracaju, Imperatriz (MA), Juazeiro (BA) ou Maceió.
Com esse dialeto, que junta uma onomatopéia recifense (mai, teco), a paranormalidade (assombração) e uma corruptela "anglo-comum-de-dois" ("boyzinha"), a moça quer saber apenas se existe interesse do rapaz pelo seu amor, uma coisa assim tão, como diríamos, acima do bem e do mal.
Cada vez mais comum, esse tipo de linguagem, ainda longe do alcance dos Pasquales (leia-se Cipro Neto, grande professor do "Nossa Língua Portuguesa", da TV Cultura) e de qualquer dicionário, mostra que a língua dos becos e veredas caminha léguas adiante dos dicionários e de qualquer padronização do mercado.
A rua está sempre adiante da norma culta, embora seja obrigatório, para efeito de escrita e dominação, colocar os pingos nos seus devidos lugares.
Com o dicionário de "nordestês", eternamente incompleto por conta da velocidade, quase romana, da língua pernambucana ou cearense, teremos apenas uma mostra folclórica da capacidade de reinventar palavras desse povo.
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Câmara Cascudo
Por mais que sejam popularizadas na região, as palavras reinventadas ou expressões -mais que batidas- irão ficar sempre à margem dos novos glossários nacionais. Dificilmente irão à escola.
O dicionário vale por juntar, em um só volume, um pouco do que já se publicou, desde Câmara Cascudo (RN), Mário Souto Maior (PE), Cego Aderaldo (CE) e Patativa do Assaré (CE), sobre o vasto mundo do palavreado que vai do sertão ao cais do Nordeste.
Temos reuniões estaduais, com termos baianos, pernambucanos, paraibanos e cearenses, mas nunca alguém havia ousado reunir expressões de toda a região.
É um belo registro o "Assim Falava Lampião", mas sempre com uma saudável dívida de eterna "obra aberta". A cada cerveja ou cachaça que se toma no Beco do Vento, em Recife, ou na feira de Arapiraca (AL), inventa-se uma expressão nova que corre rua, bairro, cidade, Estado.
²
Comparação
O Nordeste não fala uma língua diferente. Longe disso. Mas os nordestinos temperam a sua conversa com expressões que fogem do alcance de pessoas de outras regiões.
Têm uma eterna necessidade da comparação. Dificilmente um nordestino fala da sua situação, seja boa, seja má, sem uma metáfora.
Um cearense, sem ter o que roer, não fala: "Estou sofrendo". Ele diz: "Estou passando pior do que rato em casa de ferragem".
Um pernambucano não diz que o cara é PhD em alguma coisa. Ele fala simplesmente que o sujeito é "o cão chupando manga".
Ele diz mais. Fala que o rapaz é um "tampa de Crush", "o bila", "a bala que matou Getúlio". Todas as opções anteriores valem o mesmo que o anedotário carioca registrou como "o rei da cocada preta". Ou seja: o máximo.
Embora tenha um naco a mais de humor, o nordestino reinventa a língua tanto quanto os "manos" da periferia de São Paulo, que criaram, por exemplo, a palavra "busão" (o mesmo que lata de sardinha), a verdadeira "novilíngua", a pioneira globalização da periferia esquecida do capitalismo.



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